Medinhos Paralisantes

Hoje de manhã, a ida ao supermercado foi para testar a receita da Suraya com tomatinho cereja, manjericão e azeite, feita no microondas, que eu resolvi fazer e misturar com espagueti. Compro, além dos ingredientes pro macarrão, sucos concentrados de tamarindo e acerola e um desodorante roll on sem perfume da nívea. Vou pro carro. Enquanto guardo as coisas no porta malas, no estacionamento quase vazio, só mais dois carros, um deles dispara o alarme. Começa aquela musiquinha de teclado made in china que, quando os filhos ganha um de aniversário, deixamos cair sem querer, de uma altura razoável, pra ver se o tecladinho falece. Começa aquele tema do la gazza ladra que atingiu seu apogeu em boniteza na versão da Wendy Carlos pro laranja mecânica. Porém, como alarme de carro, o tema parece de caminhão de gás que tá no maior gás e descendo uma ladeira sem freios.
Eu penso, o cara vem ao supermercado, sete da manhã, na nove de julho, quase ninguém, e ele liga o alarme pra nao roubarem sua jóia, seu tesouro. Provavelmente deve ter seguro também, o que só faz a situação ficar mais rídicula ainda. Pq precisa ligar? Só a Regina Duarte pode responder. Porque ele tem medo, ele tem muito medo. E o medo não produz energia elétrica só no universo paralelo dos monstros s.a. O medo é uma força motriz aqui na nossa vida do aqui e agora. O medo paralisa. E toda a energia de ser algo se transforma em vontade de ter algo. Algo que nos livre de todo mal. É a energia potencial que move o comércio do medo com suas guaritas e muros altos e farpados.
Hoje de manhã quando cheguei ao super, fui descer do carro e tive a sensação que exagerei. Olhei para a minha bermuda xadrez de branco, azul claro, azul escuro no estilo toalha de cantina italiana pra daltônico, e vi que ela tentava desesperadamente conversar com meu crocs camuflado, Só que um falava dialeto de nápoles e o outro mandarim. Ficou difícil, tenho q reconhecer. Pelo menos a camiseta era azul marinho para dar uma acalmada nas coisas.
Antes do supermercado, antes de deixar o Joca na escola, logo que saímos de casa, eu vi um outdoor dizendo que o sinal de tv aberta analógico vai deixar de funcionar numa data aí que não me lembro mais. Eu li e me senti um marciano do meio da floresta, alguém que não vê mais tv, nem aberta e nem fechada.
O meu caso com a tv é o legítimo caso igual aquelas pessoas que vão dar testemunho sobre sua ex-vida pregressa de drogas e sexo e roque enrrol, lá na frente da igreja. Eu gostava muito de assistir tv, assistir trash, marcia goldsmith, luciano huck, ver novelas. Eu confiava na minha maturidade crítica para assistir e saber julgar as coisas erradas que eu via e poder distingui-las das certas. Porém, quis o destino que eu mudasse para um local, durante um ano, que não tinha sinal de tv aberta nem analógico e nem digital e, neste período de tempo, a família toda acostumou-se a ver filmes e séries baixadas e netflix e youtube. Nunca mais tivemos tv. Não foi por querer, mas foi muito maravilhoso o resultado. Primeiro você perde a inércia de ver aquilo que está passando e troca para ver aquilo que você quer ver. Se não quer ver nada, escuta uma música, conversa e faz outras coisas.
Mas foi o medo o que mais me deixou quando parei de ver tv e jornais de tv. O medo do futuro, o medo de mim, o medo do diferente. É o medo o que de melhor a tv sabe nos dar. Por isso, é emblemático que a frase “eu tenho medo” tenha sido dita pela namoradinha do brasil, virando ligeiramente a cabeça, para criar um clima. É o medo que vende seguros, câmeras de segurança, arame farpado, condomínio fechado, escola elitista e constrói shoppings. E é a tv que leva o medo para dentro da sua casa. Entrega em domicílio, quentinho e pronto pra usar.
Ontem, na gravação do podcast Crônicas Marcianas, o tema era apocalipse e conversamos muito sobre esta necessidade que o humano tem de sempre ter à vista, no horizonte, o seu próprio aniquilamento. Seja ele feito por marcianos, bomba atômica ou um enxame de zumbis. E hoje, quando vi o outdoor sobre o fim da tv, que já teve um fim pra mim, e ainda depois, quando eu e a Claudia ficamos conversando sobre a vida enquanto pegávamos um ar condicionado e escutávamos músicas, eu disse pra ela que ter parado de ver tv diminuiu muito meu medo basal. Que não dava para confiar só no seu taco de maturidade cognitiva, que não valia a pena aguentar o tranco da merda mídia, o conflito entre o racional e o medo instalado em doses homeopáticas, todos os dias, pela TV.
Nosso apocalipse não mais está no horizonte e nem é mais grandioso. Foda-se o imperador muleke da coreia do norte e sua ameaça nuclear. Hoje temos microapocalipses cotidianos vistos nas luzinhas leds da tela da tv. O horizonte tá ali na parede, dentro de casa, destilando medinhos paralizantes. Vivemos uma época de bosta, de muito medo, mas não viramos uma venezuela. Graças a Dels. Temer nos salvou de todo o mal, mas devemos ficar espertos pq o perigo é constante, o microapocalipse te espera no próximo segundo, seja enquanto venezuela, enquanto ataque cardíaco ou enquanto bandido q quer suas coisas.
Depois de quase três anos sem ver tv, quando tenho uma consulta e fico esperando na sala e tem tv aberta, eu me delicio, eu me lambuzo. Eu adoro as propagandas e, como estou afastado da linguagem, agora eu consigo perceber o quanto esta linguagem é forçada, não natural, feita para vender um produto. Antes, quando estava imerso, achava que era natural, que as pessoas falavam daquela maneira mesmo. Agora não, agora tudo é fake como se eu tivesse tomado a pílula vermelha do Morpheus.
Mas é ntão, querido Cleido, você está dizendo que não devemos assistir TV mesmo possuindo um senso crítico que consiga discernir entre o que é certo, o que é terrorismo e o que o errado? Sim, é exatamente isso que eu digo para vocês. Não em tom messiânico de quem viu a verdade. Apenas num tom sincero de quem entendeu que não é sobre a razão que se trata isso tudo. É sobre emoção. E emoções não são controláveis pela razão.
O famoso biólogo e pensador Humberto Maturana tem uma definicão biológica para emoções. Segundo ele, todos os seres vivos possuem cognição pq SABEM como permanecer vivos. De uma ameba a um chipanzé, todo ser vivo, vive uma vida de saber ser o que é e do que precisa para ser o que é. Árvores sabem ser árvores e vivem uma vida arvoreando. Cachorros cachorreiam. Quer dizer, pelo menos cachorreavam até uns tempos atrás, hoje tão quase humaneando.
Todo ser vivo conhece como estar vivo. Estar vivo é conhecer. Vida = Conhecimento. Pro Maturana, biologicamente, as emoções não são uma exclusividade humana e, na verdade, elas são disposições para a ação do organismo vivo que as vivênciam, elas determinam domínios, espaços possíveis para o organismo vivo atuar. Uma barata que procura comida na sua cozinha, durante a noite, está dentro de um domínio criado pela necessidade “emocional” de comer. Se você acender a luz da cozinha, este espaço de ação da sua querida barata vai mudar para um espaço de fuga do perigo onde a prioridade é se esconder. Neste novo domínio de ação,criado pelo medo, será impossível para a baratínea parar para comer um farelo caído no chão.
Emoções criam espaços e estes espaços determinam nossas possibilidades de ação. Assim, por trás de uma razão, existe sempre uma emoção que a determina e define.
Depois, só depois que eu parei de ver TV foi q eu percebi que o contato com a (realidade) proposta por ela, e pela mídia em geral, determinava em mim um domínio de ações possíveis gerado pela emoção do medo, dos medinhos cotidianos. E era só dentro deste domínio que eu podia ser capaz de viver e fazer coisas, mesmos as racionais. Por isso, amiguinhos e amiguinhas, não vale a pena. Não existe imunidade para aquilo que nem conseguimos admitir que nos afeta.
Nunca é através da ideologia q o poder nos controla. É através do medo. Medo de perder a vaga do filho pro sistema de cotas, medo de perder a diarista que arrumou um emprego melhor com plano de saúde no Carrefour, medo de perder meus bens para os bandidos. Medo de engordar, medo de não me quereres, medo de não conseguir, medo de errar, medo do mesmo.
Hoje de manhã quando acordei, olhei a vida e me espantei. Eu tenho mais de vinte anos. E o sangue jorra pelos furos, pelas veias de um jornal…
Na hora do almoço, o macarrão ficou muito bom com os tomatinhos cereja de microondas. Coloquei uma colher de sopa de pesto e fiz um suco estilo kefir, aproveitando o resto que estava na jarra, de uva e acrescentando tamarindo abacaxi e folhinhas de hortelã. O domínio em que posso me mover nesta hora, é um espaço que cheira a manjericão e eu visto a bermuda de cantina italiana daltônica. Neste domínio, a emoção que me move é o amor de estar junto, comendo, brigando e falando abobrinhas. Neste domínio, não existem os medinhos paralisantes. O microapocalipse não alfineta a base do meu cérebro a todo instante. Vivemos o viver da vida com menos eu tenho medo. O que o futuro nos reserva, dificil saber. Mas o presente se tornou mais leve, dentro do possível, já que meus receios e insegurancas agora são (quase) todos só meus. E não tenho mais o medo tá logo ali, dependurado como se fosse um quadro, na parede da minha sala. Experimente.

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