O Efeito Borboleta

Querido diário.

Não sei se eu ja contei pra vocês mas o predinho que eu moro tem multiplas personalidades, mais ainda do que a Sybil daquele livro lá. Para começar, ele tem três entradas distintas. E fica localizado numa esquina e tem duas frentes. Sendo que o endereço de uma das frentes é de uma rua de apenas dois quarteiroes que foi engolida pela avenida que surgiu depois. Meu endereço é o da avenida, mas a conta da cpfl vem no endereço da outra frente que fica na rua que cruza esta avenida e que também acham q é a frente pq a entrada para um dos apartamentos é por ali. Na verdade, acho q isso aqui não é um predio, mas um conglomerado de pequenas casas q se amontoaram em alguma aproximação tectônica inversa aa separação da pangeia.

Às onze e meia a Claudia chega esbaforida na manhã de 180 graus de Ribeirão. Esbaforida pq andou quatro quarteirões pra achar um lugar pra estacionar, já que algum folgado estacionou o carro NA FRENTE de nossa garagem e, tudo leva a crer, foi passear no shopping e já volta.

Não é possível que alguém tenha simplesmente parado em frente da garagem, só nisso eu penso. Envolto num misto de humanismo progressista e eu-trucido-este-filhadaputa-e-deixo-os-pedaços-amarrados-no-capô-igual-tiradentes, vou tentando lidar com a situação.

Passam alguns minutos eu eu nao aguento, pego um rolo de fita crepe e vou la e enrolo tudo em volta do carro. Depois, pico a crepe em pedacinhos e faço um mosaico no vidro da frente do carro para atrapalhar a visão do motorista. É para que ele demore muuuito tirando cada pedacinho antes de ir embora. Ok, não vamos levar em conta que eu tb demorei pra colocar cada pedacinho sob um sol do caraio, além dos 180 graus já citados anteriormente.

O tempo passa, são duas da tarde e nada do motorista aparecer. Eu desço lá e coloco mais fitas crepe. Não tem coisa pior no mundo que ser esta mistura de Mengele com Gandhi, e ficar querendo matar e ao mesmo tempo ter dó de chamar a polícia e o guincho, pensando na pessoa ao voltar do shopping e nao encontrando mais o pobre carrinho onde deixou estacionado.

O vizinho do apartamento térreo, com entrada e garagem independentes da minha, mas do mesmo lado da avenida (Entenderam agora aquela introdução sobre a esquizofrenia arquitetônica) chega e vê o carro e me diz, Ô Seu Cleido, o senhor tem muita paciência, eu já tinha chamado o guincho para levar este folgado aí. E nós rimos.

Claudia que tinha ido fazer alguma coisa de carro, volta depois de uma hora e o carro ainda tá lá. Como teve que andar de novo no sol quente uns três quarteirões, está muito brava e praguejando e tomada pela sua parte mengeliana e desejando a morte de sete gerações pra frente e sete gerações para trás do desinfeliz que deixou o carro naquele local. Eu me inflamo novamente e, enraivecido, pego uma caneta para escrever em vidro, aquelas que só saem com alcool e vou lá e escrevo um monte de merdas no capô do carro. Agressões humanistas, do tipo, Fiquei com dó de chamar o guincho seu folgado!

Subo de volta. Claudia me diz, Para com isso de escrever, vai marcar o carro! E eu digo, Calma, é caneta de retroprojetor, não sai com agua mas sai com alcool. Vou lá pro computador ou escutar um vinil no ar condicionado ou as duas coisas ao mesmo tempo, sei lá, não lembro mais. Tô lá, mas meus psicológico fica matutando, E se o calor e o sol fixarem a caneta na lataria e nao sair nem com alcool? Tomado por este pensamento em loop, não consigo mais ficar à toa no ar e desço lá pra baixo munido de alcool gel e paninho para apagar o que eu escrevi na lataria. É bebé, ser blackboc destruidor de patrimônio sustentável orgânico e sem agrotóxicos não é mole não fião.

Desço lá, espirro alcool gel,  esfrego o paninho e… naaaaada deçaporra de escrito sair. Pânico! Pego minha pasta seca de limpeza e… naaaada! Pego cera automotiva e naaaaaada! 10espero total! Atravesso a rua e vou até o lava carros em frente de casa e explico a situação pro mocinhos que lavam carro. Eles querem saber o que eu escrevi no carro. Não entendem a minha dor de bom moço, mas com um d-monho dentro do coração. Mi dão um pouco de pasta de polir numa esponjinha para eu testar. Passo no carro, a Claudia pega um pano e esfrega com força e a canetinha começa a sair. Nós dois ficamos lá polindo o carro. O desgraçado ainda vai levar um carro tinindo e polido embora. Isso que dá se meter com gente do mal orgânica como nós! Chuuuuuupa João do Deus! Quer dizer, melhor não chupar que a coisa já tá feia pro seu lado, né johnny?

Vamos pro pilates, eu e a claudia, pq nós somos roots perfiferia mas tb mantemos o tônus. E eu penso, na volta, se este carro tiver aí ainda ele vai ver só!

Óbvio que na volta ele estava lá, já são quase oito da noite e ele está lá. Começamos a achar que o carro é roubado. O Joca tem certeza que tem um corpo no porta malas. Decidimos que assim não dá, tão chamando a mãe de coxinha e o pai de empadinha e nóis somos perifertia fião e nóis vai chama a políça sim e vamos gritar pra todo mundo ouvir!

A Claudia liga pro 190 e explica o caso. Eles dizem que tão mandando uma viatura. Enquanto ficamos no aguardo, decido tirar as fitas crepe. A polícia chega, pega a placa pra checar se tem algum problema. Vai aqui uma pergunta, Pq policia tem que ter aquela cara séria de batman conversando com o comissário gordon? A gnt fica com medo deles mesmo se eles estão do nosso lado.

O policial verifica e diz que o carro está ok e aciona o guincho. E eu ainda consigo sentir uma culpinha no assoalho do mesencéfalo pela peçoa que vai chegar com as compras e ficar no vácuo (e sem carro). E é neste momento que estamos lá esperando o guincho e fazendo calçada pros políça que vem o grande plot twist desta nossa história.

Estamos lá, todos esperando o guincho e surge o vizinho do térreo,  aquele que me disse, Ô Seu Cleido, senhor é muito paciente, eu já tinha chamado o guincho faz tempo! Surge ele e diz, Péera Seu Cleido que acabei de descobrir que este carro aí foi o dono da garagem meu amigo que veio pegar o carro que eu comprei dele para ver um probleminha que surgiu e deixou este para eu nao ficar sem carro. Ele deixou a chave com o meu filho (adolescente, nota do tradutor) que esqueceu de me avisar, eu que vi a chave lá e perguntei, daí ele me disse. Entre quase uma vontade de rir e outra de chorar, só consigo pensar que tô com dó deste filho pq o pau vai comer na casa do noca mais tarde.

E lá vai o vizinho conversar com os guarda pra ver se consegue cancelar o guincho. E os guarda, como eu bem disse antes, fizeram curso de fleuma britânica EAD e ficam com aquela cara e dizeres de sorry impossible to eat, the lemon tree very pretty. Ou seja, nem morta que nóis cancela este guincho pq nóis ganha porcentagem. E o vizinho lá conversando, pq além do guincho também tem a multa. Depois de muita conversa, consegue que não guinchem o carro e fica só com a multa. Muita conversa inclusive com o dono da garagem de venda de carros pelo celular. Mesmo assim o guincho chega, vem num pau passando pelo outro lado da avenida e buzinando pros parça poliça que, em código morse, deve significar, Guenta aí que to chegando! Ele chega. Explicam a situação para ele.

O vizinho consegue nao ser guinchado, mas fica com a multa que vai repassar pro dono da garagem, que vai repassar pro idiota do funcionário dele que veio pegar um carro e deixou o outro em frente de uma garagem. Os policiais e o guincheiro olham meio quarteirão pra frente e veem dois carros estacionados em local proibido. Para não perderem a viagem (e nem a comissão) vão lá, multam os carros e o guincho leva os dois embora.

A Claudia vira para mim e diz, Caramba, a primeira vez que eu chamo a policia na minha vida e vira essa coisa! Se isso não for uma demonstração prática do efeito borboleta, eu não sei o q seria!

Por que sai do Facebook


Querido diário

Desativei minha conta do facebook temporariamente. Não sei ao certo quanto tempo vai ser isso mas gostaria que fosse pra sempre. Veja bem, eu digo gostaria assim como nós dizemos também que “gostaria de parar de comer doce” ou de “começar a fazer alguma atividade esportiva”. É um desejo e uma necessidade. Assim como ninguém para de comer doces pq é ruim mas sim pq tá fazendo mal, eu parei com o face também por este motivo. Disse para todo mundo que me perguntou, e foram bem poucos perto dos meus mais de 4000 amigos e amigas de rede social, que estava dando um tempo e estudando para um concurso. É verdade, estou estudando mesmo, ou tentando estudar,  e o face realmente drena minha energia vital e se bobear, assim como um alcoolatra bebe, eu fico o dia inteiro em funçao de postar e comentar postagens.

As eleições de 2018 causaram em mim, e não só em mim, profundas e drásticas reflexões sobre a vida, a vida do país, a minha vida, a minha vida junto com as outras vidas. As fakenews acabaram comigo. Óbvio que não as fake em si, mas a descoberta de que as pessoas compartilham absurdos e acreditam em mentiras toscas pq elas têm dentro delas, tudo isso, não como mentiras, mas como verdades. É dentro das pessoas que as fakenews crescem e prosperam. É no coração de cada um que está o terreno fértil para que elas floresçam.

Isso me assustou muito. Mas não me assustou mais do que ver pessoas que eu considero equilibradas e racionais se destemperando e gritando EM CAIXA ALTA absurdos que nem elas acreditam, quero crer, de tão absurdos. Fiquei com medo. E este medo me fez pensar/sentir tudo que eu estava pensando/sentindo e, ao mesmo tempo, me fez ver e observar e pensar em mim, pensando/sentindo o meu pensar/sentir.

Minha indignação com o fato das pessoas acreditarem em fakenews absurdas gerou uma reflexão não só sobre isso mas também sobre a minha indignação com isso.

Será que minha vida no facebook é uma fakevida? Será q as redes sociais drenam nossa energia vital? Será que minha vida fazendo arte, textos, criando no face em troca de curtidas é falsa ou é só um simulacro de minha vida fora das redes sociais? Será que o fato de eu protestar contra as fakenews nas redes sociais não seria também um fakeprotesto? Um protesto caloria vazia q me dá a sensação de plenitude em fazer algo mesmo sem fazer realmente algo? Será que assinar petições recebida inbox resolve algo realmente ou seria apenas uma analgésico para esvaziar um pouco minha indignação com o que eu achava estar errado? O que realmente acontece quando eu assino ou compartilho um video “compartilhe este video antes que tirem do ar”? Tudo isso faz alguma diferença pro mundo que existe fora de mim?

Quanto mais eu penso nisso, mesmo ainda tendo muitas dúvidas, mais eu acho que esse caminho nao é mais o caminho. Não é mais hora de fazer política. Agora é hora de ser política. Viver política. Segundos as sábias palavras de minha esposa Claudia. Não é mais hora de assinar petições, abaixo-assinados, ir na frente do Pedro II protestar contra o desmatamento da Amazonia. Agora é a hora de parar ou diminuir o consumo de carne vermelha no seu cotidiano, no seu dia-a-dia e, com isso, diminuir a quantidade de bois abatidos, a quantidade de gado criado, de pasto consumido, de Amazonia destruída. Sem gritar, sem postar no facebook, sem contar pra todo mundo pq nao é mais o ego q tá valendo, agora é gaia. Agora não é mais hora de se indignar. Agora é ser, é existir resistência.

Meu facebook estava uma bolha lynda nos seus ultimos momentos. Até onde eu saiba, só tinha pessoas que votaram no haddad ou que, pelo menos, eram contra o borço. No entanto, minha linha do tempo só tinha notícias sobre o fascismo e o borço. Isso começou a me incomodar. Eu entrava no face e ficava mal e ficava revolts e postava alguma coisa indignado e me aliviava. Se alguém comentasse concordando comigo, eu quase gozava de libido gasta com merda nenhuma. sim, com merda nenhuma pq está aí o resultado das eleições e a disputa por ela como foi feita realmente para mostrar para mim que o alívio de minhas tensões vivendo na rede social é um alivio fake, feito de não solução real. Acrescente a tudo isso, a vaidade de postar, ser acompanhado por centenas de pessoas, receber comentários elogiosos e está feita a minha prisão. E, como diz o ditado, “uma corrente de flores é mais dificil de romper que uma corrente de ferro”.   Ficar sem facebook para mim era horrível e impensável na minha imaginação. Tanto é que outras vezes quando ameacei sair, o primeiro que me disse, Fica! Eu fiquei gostoso. Mas eu sai e resolvi ficar aqui no mundo sem rede social. No primeiro dia, pensei igual pensei quando parei de fumar há mais de 25 anos, Se estiver sofrendo assim daqui dois dias eu volto. Mas foi bem mais fácil do que eu fantasiei. A parte horrível, lógico sempre é e foi e será o ego e a vaidade. Aquela delícia de postar uma arte, um texto e ficar gozando suave com cada curtida/comentário favorável. Este e o maior vício das redes, sua maior droga. Dar para você aquilo que você quer ou, pelo menos, acha que quer. Lamber você todinho até que não sobre mais nada de vontade para você fazer/indignar-se/lutar fora do cyberespaço.

To indo bem, to indo muito bem. Nunca mais voltei a fumar. Gostaria muito de nunca mais voltar para as redes sociais. Mas, se preciso for, mesmo que só por motivos comerciais, eu volto. Mas não quero. Esta está sendo a minha cota de sacrificio por pertencer a este mundo verdadeiro de fakecoisas e fakeações.  Esta está sendo minha atitude protesto de fazer e nao de dizer q deveria ser feito. Sair do face, com todas as dificuldades que isso acarretou no contato imediato (fake?) com os outros no dia a dia, é e será o meu existir político de agora. Se as redes sociais e suas histórias e fakenotícias consolidaram tudo isso que está aí, minha indignação resultante terá que servir pra algo, para mim. Por isso, saio da história para entrar pra vida. A minha vida. Fui.

ps. quem quiser manter contato, estou no messenger e whats ainda, mas nunca em grupos, somente em conversas entre pessoas. Minha página @cleidonetflix continua funcionando normalmente e, se quiserem saber das novidades artísticas e reflexões acessem esta minha página www.cleidologoexisto.com. Sim, eu sei que dá trabalho, tem que vir aqui, digitar o endereço no navegador, mas a vida é assim né? Dificil.

Sonhei com o Bundão

Sonhei com o bundão e nem era o da Anitta. Falei um monte de merda para ele e ele falou um monte de merda pra mim. Das merdas que ele me falou, muitas ele também tinha razão. A principal delas é que um ano depois eu ainda to gastando meu inconsciente sonhando com o bundão e sua turma educacional.
No final da conversa, ele abriu a camisa e me mostrou uma cicatriz no peito dizendo, Eu também operei do coração. Eu olhei para cicatriz e percebi que ela era menor que a minha e tinha o formato de um Y. Igual a das autopsias.
Eu não gosto mais de natal. Tenho esperneado para aceitar isso, finjo que ainda gosto, mas não gosto. Depois de adulto, até uma certa idade, eu gostava da espera e da reunião da familia e amigos próximos. Quando vieram os filhos, eu continuei a gostar por conta deles, do barato que é ser papai noel de verdade para eles.
Ontem, no dia de natal, voltando de Gavião pela estrada, tocou o Carlos Galhardo cantando Nancy no cd de mp3 que tinha a playlist que eu fiz em fita k7 pras bodas de ouro de meus pais. Faz tempo isso, uns vinte anos. Nessa época, meu pai ja começando a esquecer das coisas. Ele não usava aliança desde antes de eu nascer. Numa briga com minha mãe, jogou o anel vaso sanitário a dentro. Quando foram as bodas, saímos pra comprar uma aliança nova para ele. Ele colocou e usou pra sempre até o dia em que ele morreu.
Então, no carro, quando tocou Nancy, nome da minha mãe, com aquela voz frágil do Galhardo perto dos cantores de sua geração, num momento veio a força das lembranças. Do tudo que eu ja fui. Do tudo que eu sou. Veio como uma onda tão poderosa de sentimento, uma grande onda de calor que, eu pensei, Graças a deus que nossa mente possui mecanismos para nos proteger desta saudade holográfica 360 graus que, se continuasse por mais tempo em nossos corações, tornaria a vida impossível de continuar só com a dor intensa da aus6encia de tudo que se foi e somente uma dobra no espaço-tempo poderia trazer de novo pra nós. Foi aí que eu tomei coragem de dizer para mim que não gosto mais do natal.
Minha mãe era o agente facilitador da aglutinagem familiar. Em volta dela e do meu pai, e depois em volta dela só, a familia gravitava como planetas, satelites, discos voadores, meteoros, supermen e raios cósmicos. Era ela que cuidava de atenuar os conflitos e comunicar aos navegantes que não era assim que se navegava, no caso de trajetórias erradas.
Hoje, depois de levar os filhos para a chácara onde a familia vai se reunir este ano, na volta, pela estrada, eu senti o cheiro dos ciprestes. E, de novo, o nariz me trouxe o passado da infância dos presépios, de ir com meu pai pegar os galhos, dos laguinhos feitos com espelho e serragem para colocar os patinhos de louça. Eu não gosto mais do natal mas ele ainda insiste em gostar de mim.
No meu sonho com o bundão, fiquei desconfortável pq o monte de bosta que ele me falou, procedia em sua maioria. Faz um ano e eu ainda to lá na escola, nos sonhos. Eu sei que não to mais lá, mas eu to lá. Sou uma pessoa despreparada para vida adulta, já disse isso. O bundão vive e é a vida adulta, no mau sentido. O bundao tem razão quando diz que eu tenho que partir, sair desta de ficar feito alma que não sabe que morreu. O natal agora, para mim, é um saco. Os planetas e corpos celestes criam suas próprias trajetórias e órbitas, formando um caos-padrão novo e mais complexo. A mãe Terra se foi, o pai Sol se foi.
E talvez, quem sabe, um dia. Por uma alameda do zoológico ela também chegará. E entrará sorridente, assim como está na foto sobre a mesa. E a partir disso a família se transforme. E o pai seja pelo menos o Universo. E a mãe seja no mínimo a Terra.
Hora de deixar as coisas irem para o passado. Hora de lembrar e esquecer ao mesmo tempo.

A Nobreza dos Sentimentos Baixos

Sempre quis ser amado pelos meus alunos e alunas, meus seguidores nas redes sociais, meus amigos e amigas, sempre quis ser amado por eles. Mesmo quando sou um chato, eu quero amor. Quero que digam, Eu amo este pentelho!
Porém, ser amado é tarefa árdua, gasta-se muita energia.É preciso estar atento e forte, sempre. As pessoas amadas nunca podem pisar em falso, qualquer descuido e o amor vai embora. Ser amado é manter-se em guarda o tempo todo. Ser amado é contra as leis da natureza.
Hoje eu acordei de manhã de um sonho interessante. Estava sentado e de repente olhei para o meu pé e nele tinha um buraco meio descascado. Não sei se vcs ja foram crianças de ficar com aquele cascão no pé, aquela camada de queratina que é quase um casco. Dai q tinha vez que descascava um pedaço e você puxava uma pele e ficava um buraco igual quando você puxa um fiapo daquelas muçarelas que desfiam.
Bom, mas voltando pro sonho, eu olhei pro meu pé e vi que tinha um buraco na sola queratinizada dele. Virei meu pé com as mãos para ver direito e vi um buraco retangular de uns 4 x 3 cm que afundava na pele cerca de uns cinco centimetros de profundidade. Lá no fundo estava a sola do meu pé de verdade, bonita, viva, rosada e nova. E esta camada grossa por cima era feita de pé morto, insensível e cascudo. Olhei e fiquei impressionado que meu pé estava la dentro do meu pé e que aquele cubo vazado do buraco ia até ele para me mostrar que ele estava lá, vivo.
Neste final de ano, mesmo antes das porteiras das demissões na educação terem sido abertas, escancaradas, mesmo antes de ver amigos e conhecidos despencarem para fora de seus empregos, eu resolvi ser odiado ainda movido por um gran finale que tinha prometido pra mim para resolver de vez meu período de luto com tudo isso. Desta forma, neste final de ano, decidi me libertar da necessidade de ser amado incondicionalmente pelos meus alunos e pelos outros e ser odiado. Não estou acostumado com isso, quero ser amado. Mesmo que o amor venha quase que incondicional, ele exige cuidado permanente de quem quer ser amado para ele permanecer em alta. É muito desgastante. Por isso, ser odiado pode ser libertador e mais verdadeiro em determinadas circunstâncias. Não corresponder às expectativas e fazer o que suas emoções mais vis sussurram aos seus ouvidos e vísceras é se dar ao luxo de ser a pessoa baixa que você é, que todos somos. É recusar o mundo adulto que interage de maneira adulta e educada enquanto emoções menos desenvolvidas filogeneticamente comandam de verdade e mandam nos bastidores das negociações. A razão é falsa e adulta, porém é educada. Somos movidos por ela no nosso cotidiano newtoniano. Precisamos dela pra conservar nossos empregos e relações sociais. Não é possivel viver intensamente num mundo adulto, racional e polido. Mas é só este mundo que nos é ensinado a viver ou almejar viver quando nos tornamos maduros. O resto é ser criança, infância, maneira infantil de lidar com o universo.
E se não existisse esta hierarquia de emoções? E se o altruísmo fosse da mesma intensidade e nobreza de uma vingança? E se o choro da perda pudesse se manifestar para sempre em nossas vidas da mesma maneira que se manifestou quando perdemos o seio materno? Sem as frescuras e sublimações e racionalizações que fazemos da perda algo mais nobre e inglês quando crescemos e nos tornamos adultos.
Ter detonado com uma página com quase 3000 seguidores e causado a revolta de uma parcela de ex alunos foi uma coisa que eu não quis pra mim, mas que foi necessária. Ser odiado é ruim, mas é libertador. Não exige nada de você além do pontapé inicial. Não precisa de manutenção, não é preciso reagredir, cuidar. O ódio, primal que é, mantêm-se quente forever e por si só. E você fica liberto dozotro e da necessidade de ser polo gerador de amor e compreensão.
Por quanto tempo pisei o solo com esta camada isolante feita de células mortas de amor e de falso amor? Por quanto tempo a nobreza dos sentimentos isolaram meu calcanhar novinho e rosa de pisar o chão e me conectar com meu próprio fígado, sede primal da alma pros antigos?
É fim de ano e vejo amigos e amigas e conhecidos caindo no poço da vida real. Está tudo interligado. As mesmas emoções nobres que nos isolam dos outros seres humanos, tornado-nos especiais para nós mesmos em relação a eles, também não nos deixou ver que era sobre nós mesmos que falavamos quando diziamos, Os pobres vão se fuder com tudo isso. Nós somos os pobres de sentimentos nobres. Nós somos aqueles que achavamos nao ser aqueles que cairiam junto com o primeiro sopro de retrocesso social. Nós não somos os ricos, nós queremos pertencer junto com eles, mas nós não somos os ricos. Mesmo que conhecimento seja riqueza e poder, nós não somos os ricos. Nós todos caímos ou cairemos ao primeiro sopro da crise. Eu vi isso. Eu vi meu verdadeiro calcanhar e percebi também que, mesmo descalço, ele nunca havia tocado a terra.

Formatura, a estranha

Semana que passou teve a formatura da Sofia. Não posso negar que imaginar ir pra colação de grau e encontrar desafetos da antiga escola do zé gotinha me perturbou o existir por dias. Sexta de manhã, partimos para a colação depois de eu dar um tapa no visual da barba, reforçando a tonalidade azul, para passar discretamente sem ser visto pela cerimônia.
Mas antes da formatura, na terça, teve dois eventos simultâneos na minha vida, uma comemoração em familia de algo que nao deveria ter sido comemorado e a abertura da copa de futsal down que eu tinha feito o desenho do mascote e fizeram questão da minha presença na abertura do evento. Calma, dizer que fizeram questão da minha presença está escrito aqui porque esta informaçao é importante pro desenrolar da história do mascote. Eu fui na abertura mas não poderia ter ido. Mas achei falta de consideração não ir, então fui. Cheio da autoestima que a maior parte dos artistas possui eu fui e fiquei esperando agradecimentos públicos ao meu desenho, feito gratuitamente, do mascote. Sim, meus caros, caridade não existe. Ou melhor, ela existe mas não sabemos onde e por quem ela é feita. Se sabemos, não é caridade, é promoção. Eu nunca fiz caridade, por isso, esperava um agradecimento público na abertura para acalentar meu ego. E ele não veio. Agradeceram até loja de tintas, as famosas parcerias entre o público e o privado que o peéssedebe A-Dóó-ra, mas eu não. E descobri que poderia ter ido antes pra comemoração do incomemorável que ninguem nem teria percebido. Acontece que sou tonto, se alguém me diz, Faço questão da sua presença, eu levo isso a sério e penso que fazem mesmo. O resto é fantasia minha, reconheço.
Chegando no centro de eventos, na escada rolante, dou de cara com a formiga rainha do zé gotinhakids, trespasso o olhar através de seu pequeno corpo pq sei que somos feitos de vazio, quanticamente falando. Foi um bom começo, se nao fosse os betabloqueadores, provavelmente teria sentido meu refurbished heart acelerar um pouco. Entramos pelo centro, dou de cara com o bundão, meu éks-amigo diretor de lá que nunca veio conversar comigo e me explicar o que aconteceu. Bundão, sim, um bundão sem estirpe e majestade de chefe. Ele finje que não me vê, sua melhor especialidade cognitiva, mas eu, achando que tava podendo, encaro o bundão e fico olhando pra ele até o momento em que, inevitavelmente, nossos olhos se encontram na intersecção de retas que se cruzam. Bundão olha e eu continuo com a cara de mau encarando ele e seguindo em frente. A vida até parece uma festa, diversão é soluçao sim. Diversão é solução para mim.
O lugar é tão grande que sinto que não terei mais nenhum problema com ninguém, não verei mais ninguém, já que estou lá no fundão. Sentamos eu, a claudia, o joca e depois chegam mariana e minha irmã. Nico não foi. Nico deu uma de revolts com a irmã, com o sistema capitalista, com a vida e com o universo em desencanto ao seu redor. Óbvio que teve treta em casa por conta disso antes de saírmos. Mas, como diria o mano brown, cada um é cada um. O que o mano não disse é sobre a vontade de dar uns cada um na orelha de gente que tá fazendo uma burrada, você tenta avisar, e a pessoa não escuta ou finje escutar.
Olho para aquele lugar imenso e reparo nas portas estilo ginásio do baile da carrie, a estranha. Fantasias de violência paranormal povoam a minha cabeça.
Imagino eu olhando pras portas e elas trancando psicocineticamente, a edição das imagens acompanhadas pela trilha sonora, Tcham, Tchaaam, Tchamm!
As pessoas todas pegando fogo e gritando. Os amigos e amigas da escola olhando pra mim com olhar de eu nao tenho nada a ver com isso, eu gosto de você até. E, mesmo assim, elas todas voando como marshmallows pós-fogueira. Formiga rainha torrada num canto da parede. Bundão, fazendo o que faz de melhor, cagando de medo. No meio de tudo, sofia de zóio arregalado passando incólume pelas chamas da vingaça. Rararararaa, acho que puxei o joca, fico com vontade de rir só de imaginar tudo isso em minha fantasias.
Acaba a formatura, sinto-me feliz de ter ido, passado micromomentos de tensão e suspense, rido com eles e com outras coisas, gritado junto com a familia na hora q a sofia foi receber o diploma, de tudo ter corrido bem. Do lugar ser grande o suficiente para garantir minha distância do mal.
Como haviamos planejado, a comemoração vai ser no madero’s bem ali em frente. Dia de morder aquele sanduíche maravilhoso e lembrar o motivo porque, apesar de tudo, não sou vegetariano. Chegamos lá, sentamos. Eu olho mais pra frente e percebo que a idéia de ir ao madeiros não foi só minha. Metade do corpo docente do mal está lá também. Óbvio que no meio deles, tem as pessoas que eu gosto também, mas o mal predomina. Penso assim, deboas, eles tão lá e eu to aqui, continuemos, então, nessa vontade normal de viver.
Sim, mas se vocês assistiram Carrie, a estranha, o original, vocês se lembram que este filme inventou o susto quase nos créditos finais. Aquela pulada básica da poltrona do cinema numa hora que você já relaxou e deu por encerrado o filme de suspense que você estava assistindo. Foi assim, comigo, também. Quando percebo, vejo a mãozinha enterrada da carrie em forma de professor desafeto levantar da terra e caminhar em minha direção. A mãozinha vem até mim e me cumprimenta, continua a segurar minha mão e me diz, Precisamos conversar, o que você pensa que aconteceu é só a sua versão do que aconteceu, tem o outro lado. Eu consigo ficar quieto e só olhar como havia treinado por meses caso isso acontecesse. Para terminar, a mãozinha ressuscitada ainda termina com uma frase digna do filme Em busca da Felicidade do will smith. Ele diz, O papel que você tinha na minha vida você continua tendo!
A mãozinha morta de carrie desgruda da minha e vai-se embora. Eu fico mal, eu fico bem mal porque mais uma vez eu acho que eu alucinei tudo e que todo mundo é adulto e só eu sou uma criança mimada e magoada por seres superiores racionais e adultos. Quase estraga meu almoço. Mas não estraga. Não estraga porque eu tenho memória e me lembro que o professor é bom de linguagem e usou sua língua, muito tempo atrás, para ficar fazendo piadinhas na minha ausência sobre uma ligeira treta que tivemos por conta de uma sala onde eu ficava e que ele chegou lá um dia e, senhor de si, pediu para eu sair pq precisava ter uma conversa particular com outro professor. Oi? Eu sei que por conta de ter dito pra ele que não tinha gostado dele pedir para eu sair da minha sala, ele ficou fazendo graça na sala dos professores sobre isso. Lógico que nunca na minha presença, óbvio. Lembrando então disso, cheguei a conclusão que o papel que tive e continuo tendo na vida dele, deve ter sido o de papel higiênico, rarararaara. Marcou, o final do discurso dele foi exagerado e daí eu percebi a falsidade. Claudia não estava na mesa nesta hora, uma pena, já que ela em sua precisão cirúrgica de matar, teria dito apenas, Meu, vaza daqui, nós estamos almoçando!
E o final extended play do carrie ainda não tinha acabado. Mas o que aconteceu na sequência levou meu private carrie, a estranha mais pro lado de A Praça é Nossa já que virou comédia de baixa qualidade e apelo popular.
Passa mais alguns minutos e sinto alguém me abraçar pelas costas. Eu estou sentado, mas a pessoa está de pé. A voz é inconfundível, grave. Mas não está natural. A voz interpreta um papel e tem uma dicção entonação parecida com o ro ro ro do papai noel. Parece um conto de natal com o bom velhinho falando comigo, o mau velhinho. RoRoRo, diz o bom velhinho. A voz me abraça e diz, Deixa eu dar um abraaço neste meu FALSO amigo. Eu olho pra claudia e começo a rir. Não é um riso de nervoso, nem de sarcasmo. É um riso de i don’t believe no que tá acontecendo. Meio que me desloco de mim mesmo e parece que estou assistindo um quadro da praça é nossa em que eu sou o carlos da nóbrega abraçado pelo mendigo aristocrata. Eu rio porque o instante existe. Nao to alegre nem to triste. É tudo um absurdo. Eu, um falso amigo, rararaa. Deveria ser obrigatório para todo mundo, tipo assim serviço militar, fazer um ano de psicanálise ou afins. Daí a pessoa não pagaria o mico de projetar no outro uma coisa que ela que é. Sábado intenso e nem são 13 horas ainda. Volto pra casa abatido pela maneira como as pessoas são falsas quando precisam ser falsas. Nenhum deles, nem o bandido nem o assistente de bandido entraram em contato comigo antes desde que eu fui demitido do zégotinha. Nenhum. Ser demitido, pelo menos no meu caso foi algo como dizer, olha ele terminou de existir. O mesmo papel que eu tinha antes, sei.
Essa invasão de minha privacidade, esta avançada de sinal em minha direção só piora tudo. Depois de um ano deixando a página cultural da escola continuar a existir em minha página pessoal do facebook. Depois de um ano esperando que eles acordassem para a vida e chegassem a conclusão que não se deve deixar bem tão precioso nas mãos de quem criou a página e tem a senha dela e a capacidade de fazê-la deixar de existir, e que foi demitido e agora é um velhinho magoado e rancoroso, depois de um ano, eles não se tocam disso na prepotência e arrogância característica de quem mora no olimpo, mesmo que num MRV do olimpo. Desconecto a página, tiro seu conteúdo e deixo ela lá como um memorial vazio, testemunha de tudo que ela não virou.
No domingo, a vida continua e o Lau morre. Tá tudo tão louco e intenso e estranho neste final de ano que eu nem ligo. Faz três finais de ano que a vida explode em cacos para mim. E olha que nem contei aqui da reunião familiar marcada para comemorar um fato desaparecido que duas horas antes da reunião descobrimos que não havia motivo pra comemorar porque ele ainda estava lá.
Não fui ao enterro do Lau, decidi não ir. Acho que foi só passando os dias para que eu percebesse a partida dele como algo definitivo. Algumas pessoas morrem para mim em momentos estranhos e, com isso, ficam suspensas num limbo de estão vivos mesmo que mortos. Talvez isso vá acontecer com o Lau. Aconteceu com minha tia Lourdes. Quando eu fiquei sabendo que ela morreu, estava num congresso de cognição na Unicamp. Nunca tinha ido pra unicamp, nem neste tipo de congresso. Foi lá que eu fiquei sabendo quando liguei pra claudia. Dois momentos únicos diferentes, a morte da minha tia e a unicamp. Os dois se juntaram e criaram um limbo de minha tia nao morreu no meu coração. Coisas estranhas do espaço-tempo na linguagem dos heptapodes.
Terça vou fazer fisioterapia as sete e vinte da manhã. Depois vou pro Extra comprar carne pra fazer yakissoba, o resto eu ja comprei o kit no reginas picadinho (eu tenho medo deste nome). Pego o lombinho e rumo ao caixa enquanto penso, Será que tem mais alguma coisa para eu com….BLUSGHSSPALSH CROC CABRUM! Essa onomatopéia toda sou eu caindo na seção de legumes por conta de uma poça de agua que tinha no chão. Eu caí mesmo. Imagina um supermercado vazio. Imagina um senhorzinho caminhando docemente no meio das prantas com a barba azul. Agora pensa numa ema sendo abatida a tiros e caindo meio que morrendo mas espalhando as asas para manter o equilibrio enquanto vai ao chão. Esse sou eu. Levantei, mas o moral ficou lá no solo. A calça com uma perna completamente ensopada pq eu fiz questã de enxugar a poça com ela. Alguém me explica pq além da gente cair e se fuder ainda temos que ficar com vergonha de ter caído? Mundo injusto este.
Vou andando até a fila rápida que era razoavelmente longe de onde eu tinha caído e me perguntam, Machucou? Sim, sim, foi uma queda espetacular e visível a quilometros, pelo jeito. Sim, sim, eu reclamei e tals mas nem fiquei bravo. Minha semana tava tao cheia dos paranauê que até achei que a queda do império romano ornava com ela.
Existe um discurso no mundo adulto capitalista que nós, os adultos, temos que agir e reagir aas coisas de maneira adulta. Isso significa, pro mundo adulto, ser racional e educado e, se for o caso, só depois fuder com a pessoa que é seu desafeto, muito educadamente e sendo adulto. Depois que eu derrubei o varal e as roupas ficaram todas caídas no chão, um mlk aluno do zé gotinha entrou em contato comigo querendo conversar “como dois adultos”. E eu pensei, como conversar como dois adultos com um mlk que criou um perfil falso pra me zuar e postou que eu era o câncer desta página minha que ele achava que era dele, que tudo que eu publicava lá era porcaria? Só se ele fosse conversar como adulto pq eu nao converso. Eu sofro de empatia filogenética. Eu subo ou desço meu nível ao mesmo do meu interlocutor. Seja ele o homem aranha, um inseto ou alguém que discute a relatividade da objetividade cognitiva. Para mim, conversar como adulto, muita vezes é apenas ser falso o suficiente para continuar a luta depois, pelas costas. Eu não, eu arranco meu coração e coloco aqui pra vocês. Me fodo? Claro. Pago mico? Claaaro. Me exponho? Claro. Mas não sou falso, o mais idiota e infantil dos meus sentimentos está aqui. Para quem quiser e para quem não quiser ver.

Cigarras não Cantam


Só duas coisas podem animar uma caminhada que se desmorona em desânimo, trans europe express do kraftwerk ou pensamentos de vingaça elaborados e cheios de enauseantes detalhes.
Ontem de manhã, fui fazer minha fisioterapia dedal. No canteiro central, como vocês bem se lembram do penúltimo episódio, tem um caminho de formigas saúvas. Ontem de manhã, elas estavam no fervo, várias carregando pedaços de folhas verdinhas e cantando, eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou. Parei, olhei para elas e resolvi filmar. Depois pensei, Ah, daqui a pouco quando sair da fisio eu gravo.
Hoje de manhã teve volta a caminhar no parque das artes. Adoro a fauna e a flora das caminhadas. Adoro as mocinhas que vão de maquiagem, brincos, anéis, pulseiras e passam perfume pra caminhar. Adoro as 100nossaum que andam no sentido contrário que todas as outras pessoas e ainda vao falando no celular estilo walkie talkie e nem percebem que atrapalham o fluxo. Adoro as três graças que andam uma ao lado da outra numa pista que cabem duas pessoas uma ao lado da outra e andam assim pq elas precisam conversar. Adoro é que não é que elas fazem isso pq são do mal, elas fazem isso pq o mundo ao redor delas nao existe. Adoro os bonito malhado junto com as bonita durinha bronzeada por igual que correm numa velocidade de guepardo ao entardecer na savana africana. Adoro os velhinhos em recuperação, minha categoria, que andam, fazem uns movimentos com os braços pq tudo precisa de ajuda nestes corpos seminovos. Fui disposto a dar uma volta de 1200m e rumar pra casa porque estava muito sem ânimo, mas quase no final da primeira volta, toca trans europe express no meu fone e a batida trem me anima profundamente como sempre faz. Kraftwerk é uma das minhas pouquissimas bandas prediletas que eu posso escutar sempre que eu fico bem. Começo a embalar a caminhada sincronizando com a música. Eu animo e aumento o ritmo. Lembro de pessoas que gostaria de me vingar. Vingancinha básica, pedacinhos cortados passados no azeite e orégano e servidos na festa de final de ano. Pensamentos de vingança também dão um up no caminhar. Recomendo.
Ontem, na fisoterapia, enquanto passavam o ultrassom no meu tendão em gatilho, escuto na baia ao lado o outro fisioterapeuta conversando com a sua paciente, OS brasileiros estão acostumandos (…) OS políticos (…) ELES só querem… Todo discurso dele exclui ele próprio, os brasileiros são (mas ele não é nem o que os brasileiros são e nem brasileiro), os políticos (outro tipo de gente, talvez até outra raça, a qual ele também não pertence). Toda conversa se trata sobre pessoas, sobre um povo cujo sujeito que conversa pensa não pertencer. Ele é apenas o observador que observa uma situação sem ter a mínima participação na construção disso tudo.
Este é o grande problema de nossos discursos, não nos incluimos neles, discursamos como se estivessemos de fora de tudo isso opinando sobre um mundo que veio pronto para nós. Um mundo que nos é pré-dado. Mas as coisas não são bem assim. Maturana escreveu bastante sobre isso. Biologicamente nos é impossível acessar um mundo que não seja o que construímos vivendo nele. Por isso, não existe uma objetividade pq não temos acesso a este mundo objetivo que existe independente do nosso viver/observar este mundo. Nunca temos acesso a objetividade pq a objetividade que vemos e vivemos inclui também o operar nosso como seres vivos. A isto ele chama de (objetividade), ou seja, uma objetividade entre parêntenses. Pq entre parênteses? Porque ela inclui a estrutura biológica e cultural do observador na sua construção.
O fisioterapeuta e nós mesmos, não levamos isso em conta quando falamos do nosso mundo. Aliás, nem é nosso, mas dos brasileiros e dos políticos, mundo ao qual pensamos não pertencer. Ledo engano, nós pertencemos, nós ajudamos a construí-lo e, a cada passo que damos, ou não damos, também fazemos a história. Pensar num mundo que existe objetivamente sem o nosso operar nele é se isentar da responsabilidade sobre ele. Afinal, ele já estava aí antes de nós, quando chegamos, ele nos foi pré-dado e estava pré-pronto.
Se pensarmos que não é assim, que ninguém tem acesso a uma verdade objetiva independente de nosso operar neste mundo, que nada nos é dado, que nosso viver constroi tudo isso, deixamos de ser observadores críticos porém impotentes sobre o operar nosso no viver e passamos a ser construtores e responsáveis por este mundo que construímos ao viver nele junto com os outros.
E assim, nosso discurso de fisoterapeuta dono da verdade, mas impotente perde a razão e a força de ser/não ser. Não existe mais eles, agora existe apenas nós, um conjunto de pessoas diferentes mas pertencentes a um mesmo grupo em que somos todos responsáveis pelo que fazemos ou deixamos de fazer.
Quando eu sai, uns vinte minutos depois do que tinha entrado, e fui procurar o caminho de saúvas carregando folhas verdinhas para filmar, ele já não existia mais. Fiquei revoltado, passei minha infância inteira doutrinado pelo trabalho honesto e proletário dos heminópteros, cultuado em fábulas. Elas já tinham terminado o serviço e, provavelmente, diferente do que a cigarra pensa, estavam todas no buteco do formigueiro tomando uma cerveja de formiga. Até as formigas sabem, trabalho não dignifica nem o homem, nem o humano e nem nenhum ser vivo. Aliás, trabalho só é trabalho pro ser humano, pro resto são apenas necessidades do viver e no manter a sua adaptação em congruência com o meio.
Dou duas voltas na pista, isso intera 2400 metros e ainda tenho três quarteirões de subida até minha casa. Kraftwerk e planos de vingança me salvaram. Agora é só chegar em casa e passar gelatina de banho da lush para sentir cheiros que são arte aroma pro meu sistema límbico. Formigas não trabalham, cigarras não cantam, o mundo humano só é humano para os humanos. Mesmo assim, dentro deste mundo, muito dos humanos insistem em se excluir de tudo que é merda humana pq esta merda não pertence a eles. Pertence sim, fião, afinal,
“Tudo que é humano me comove, porque sou homem. Tudo me comove porque tenho, não uma semelhança com ideias e doutrinas, mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira”. 
Álvaro de Campos.

O Yin e o Yang, o Estado Islâmico e os Animais de Estimação.


Confesso, tenho uma certa admiração por movimentos radicais, black blocs, radical fem, baden meinhof, farcs, panteras negras. Até o estado islâmico tem lá seu charme se vc pensar que o estado islamico estava lá quieto e de repente os states foi lá levar a liberdade ocidental pra eles e pegar o petróleo.
Óbvio que movimentos radicais engatados na ré, terra plana, fascismo e criacionismo nem considero, mesmo pq nem são movimentos, são estagnações.
Posto isso, também tenho que confessar que nenhum movimento radical me interessa na prática em termos de, eu nunca participaria de algum deles. Sou mais relativista que Albert Einstein. Eu sempre considero o indíviduo no meio do todo, eu sempre penso na história pessoal ou social de determinada pessoa ou grupo de pessoas. Movimentos radicais muito raramente fazem isso. A eles importa o todo enquanto movimento que avança, e isso não é uma crítica, é só uma divergência de ver as coisas.
Uma crítica que eu faço aos movimentos radicais que eu considero é que são muito radicais. Quem conhece a dinâmica do símbolo do yang yin sabe que o ponto preto no meio do branco e o ponto branco no meio do preto, representam o contrário inserido no meio daquele que é o que é. Se percebermos o símbolo como algo dinâmico, como uma roda que roda e começa suave (a parte rabinho do símbolo) até atingir seu apogeu, neste apogeu já existe a semente do seu contrário, dentro do apogeu do yin existe a semente do yang e vice-versa.
Nos movimentos radicais, que vivem o apogeu radical de si mesmo, muitas vezes vemos o seu contrário. Feminismo radical que aceita apenas mulheres vaginais genéticas e, com isso, mas por outros motivos, acaba se aproximando dos gêneros genéticos aceitos pelos evangélicos. Machos fascistas carecas q se depilam e excluem mulheres de suas experiências consensuais sexuais e, com isso, se aproximam de homossexuais de aparência feminina que também se depilam. Evangélicos radicais que destróem terreiros de umbanda e santos católicos de maneira semelhante ao EI destruíndo milenares Lamassus mesopotâmicos pelos mesmos motivos.
Por isso, o único movimento radical do qual eu faria parte, talvez pq foi eu que inventei e eu sou o único sócio, seja o Free Pet. Movimento que quer extinguir não os animais de estimação, mas sim a necessidade de tê-los. Necessidade que, diga-se de passagem, é uma necessidade humana e não tem nada a ver com os animais. Sim, sim, vc deve estar espumando neste momento e pensando, mas eu dou casa, comida e roupa lavada para eles. Problema seu, e não dos animais. Com certeza, no mundo deles, eles estariam muito mais felizes sujos pelo mundo, trepando, comendo e vivendo a vida de animais e não de animais de estimação de um dono que, quando é liberal, insiste em dizer que é amor. O seu amor, ame-o e deixe livre para viver.
Alas mais radicais do protetores da estimação enquanto necessidade animal dirão que muitos dos pets são breedings de espécies selvagens. Mesmo assim, esta breedinização foi sempre feita pra servir propósitos humanos, nunca dos animais. O Free Pet, como próprio nome diz, é liberdade total para os animais, é a extinção da estimação. É radical, e eu concordo, se eu não fosse o presidente fundador deçaporra eu também não me filiaria.
Reflita! Recuse! Resista!

Maturana 2049*


Ontem foi uma segunda especial para mim pois fui ver o Humberto Maturanaem uma palestra na usp, mais de vinte anos após ter ido vê-lo em BH no I Congresso de Autopoiese. A história deste congresso é engraçada. Eu fazia pós-doutoramento no CINDEDI da FFCLRP e a Clotilde me disse, Olha este pensador, ele veio da Biologia, acho q você vai gostar da teoria dele. Ela me disse isso pq eu também tinha vindo das biológicas e tinha caído lá, no desenvolvimento humano sócio-interacionista cuja parte construtivista também vinha de um cara que veio da biologia, o arroz de festa das escolinhas infantis, Jean Piaget.
Então, eu estava em boa companhia. Piaget, Maturana e Vasconcelos. Desculpa aí.
Bom, mas a Clotilde achar que seria mais fácil eu entender o Maturana pq eu também tinha vindo da neurofisiologia como ele (desculpa aí II, a missão) foi uma dedução lógica dela, mas que teve pouco a ver com a realidade. Eu não entendia nada do que ele escrevia. Mesmo tendo começado pelo livro paulo coelho dele, escrito junto com o Varela, A Árvore do Conhecimento, bastavam dois parágrafos e eu já voava para longe, pensando em coisas mais palatáveis como música, filmes e coisas pra comprar no supermercado.
Suei muito para entender o básico da teoria dele. Por isso, ontem, na palestra, ao ver pessoas tendo dúvidas para perguntar para ele, admirei a ilusão delas ao achar que sabiam o suficiente para ter dúvidas.
Mas, voltando aos vinte e tantos anos no passado, lá, eu tomei como questão de honra entender a teoria dele. Também, como uma Scarlet O’Hara epistemológica, jurei que o dia que entendesse, eu faria de tudo para ser didático e (objetivo) para que as pessoas que estivessem interessadas também pudessem entender.
Naquela época, lá fomos nós, eu e a Claudia, para BH para ver e ouvir e não entender merda nenhuma sobre cogniçao, autopoiese e biologia do conhecimento.
Neste congresso, aconteceu uma passagem que já faz parte do meu folclore pessoal e que eu já contei em outro textão, tenho quase certeza absoluta. Porém, vou ter que contá-la novamente, pois este Maturana 2049 precisa ser entendido sob a luz dos acontecimentos do primeiro filme de 1997.
No filme original, Maturana dava sua palestra em inglês em um grande anfiteatro cujas saídas ficavam na frente, nas laterais do palco. Ele falava sobre acoplamento estrutural, sobre estar em congruência com a sua circunstância, sobre a clausura operacional e eu escutando a tradução simultânea para o português em fones de ouvido. Meus pensamentos iam e voltavam quando algo aconteceu. Olhei lá para fora, pelas portas lateriais que estavam abertas e vi um coffe break com pão de queijo e bolachinhas sendo instalado. Acordei de vez, agora movido pela fome e pela necessidade de sair da palestra que não estava entendendo nada, para comer alguma coisa.
Minha mente começou a elaborar estratégias possíveis de saída discreta e a mais brilhante idéia que eu tive, meu plano infalível foi: Maturana está respondendo perguntas da platéia, as pessoas interessadas em perguntar alguma coisa vão até o microfone instalado perto do palco e perguntam. Já sei, quando ele acabar de responder a uma pergunta, no intervalo entre uma pessoa e outra, eu saio e vou lá fora comer pão de queijo. Vou com o meu fone e continuou a escutar a palestra.
Plano perfeito, todos estarão prestando atenção no próximo perguntador e eu saio discretamente sem ninguém me ver. Era só esperar o momento oportuno.
Maturana pergunta, Mais alguma pessoa? E o imbecil aqui, achando que ninguém iria notar, levanta e vai descendo pelas escadas laterais rumo ao coffe break. A Claudia tem um surto e pensa, Como que ele vai fazer alguma pergunta e se ele não tá entendendo nada deçaporra? Uma outra pessoa se levanta e vai em direção ao microfone. Maturana faz um gesto para ela esperar pq eu tinha me levantado primeiro. Eu, alheio a tudo que se passa a minha volta, continuo descendo em direção aa porta mas, para o resto do auditório lotado, estou indo em direção ao microfone. Todos olham pra mim, só eu que não. Eu olho pras bolachinhas lá fora. Eu passo pelo microfone e saio pela porta. TODOS estão esperando eu fazer uma pergunta e eu passo reto e vou lá para fora. Quando chego lá, escuto pela tradução simultânea a voz dele dizendo, Não é maravilhoso como nossas expectativas nem sempre são correspondidas! E o auditório cai na gargalhada. E a minha ficha cai e eu percebo que era de mim que ele estava falando. Olho lá para dentro e vejo a Claudia lá no fundo fazendo sinais discretos que eu traduzo por, Não volta aqui! E se voltar, não senta perto de mim! E eu não volto. Enfrentar o Mat eu até enfrentava, mas a Claudia já ia ser bem mais complicado. Depois, um pouco muito depois, quando já entendia a biologia do conhecer o suficiente para ter dúvidas, eu usei esta frase do Maturana em meu trabalho de pósdoc sobre interações de bebês em creche e os possíveis múltiplos olhares sobre isso.
Ontem, antes da palestra, de manhã, fui fazer fisioterapia pro meu dedo em gatilho sequela sabedelspq da minha cirurgia cardíaca. Ao atravessar a avenida, no canteiro central, no meio da grama, vi uma trilha de não-grama feita pelas formigas que passam sempre pelo mesmo caminho. O ser vivo e seu entorno. Acoplamento estrutural. As ações recorrentes do vivo em seu entorno. Muda o ser vivo, muda seu entorno. Enquanto os dois permanecerem em congruência no aqui agora, o vivo permanece vivo.
Entro na sala imensa de fisoterapia, várias pessoas fazendo várias coisas. Parece um filme surrealista de Buñuel. Uma academia de ginástica do universo paralelo de fringe onde as pessoas quase não se movem, ficam paradas em posições não naturais. Uma anti-academia da vida cotidiana. Pessoas encostadas nas paredes alongando um ombro, pessoas deitadas em colchonetes esticando pernas. Tudo quase uma fotografia. Tudo quase me revelando um outro lado do que está aqui e agora. Uma outra leitura possível do que é ser o que somos.
No final da tarde, zarpamos em direção ao Maturana. Eu e a Claudia numa versão mais de vinte anos depois do mesmo Eu e a Claudia de Belo Horizonte. Somos nosso próprio Blade Runner 2049. Estamos agora dirigindo e atuando na nossa continuação.
Quando estamos chegando na USP, digo pra Claudia, Lembra quando viviamos aqui e pensávamos que seria para sempre? Agora, dentro da minha cabeça o campus de agora se sobrepõe ao campus de minha época como Joi+Prostituta transando com K. O lugar da palestra já foi o Santander e antes já foi o Banespa onde eu já fiz exposição de pinturas quando lá tinha uma galeria de arte. Uma exposição onde o Flavio D’Andrea, que dels o tenha, e digo dels e nao o diabo pq nao quero encontrar com ele no inferno, fez uma análise psicológica pública de minha pessoa de 19 aninhos dizendo que seu eu não pintasse eu seria um estuprador. Hoje, quase quarenta anos depois, eu continuo a discordar dele. Acho que se eu não pintasse, eu seria um serial kiler, muito mais divertido. Bom, mas isso é assunto para outro querido diário. O lugar ainda continua lindo. Pura parede de vidro preenchida pelo verde da USP.
Estamos sentados na ponta, perto da parede de vidro. Eu vejo Maturana chegando de mansinho com seus 89 anos, quietinho, com olhar de quem vê além e aquém. Ele está a menos de dois metros de mim, dando uma sacada no ambiente. Tenho vontade de pular da cadeira e cair de joelhos aos seus pés, fazendo referências proto-indígenas-povos-menos-desenvolvidos-tecnologicamente e dizendo uga-uga-uga-humberto! Óbvio que não faço nada disso, eu estou na USP e aqui não pega bem demonstrar sentimentos, somente razões, mesmo que estas razões sejam encharcadas de emoções baixas e mesquinhas. Eu, pelo menos, sei que minha emoção por ele orna com a aquela música do Roupa Nova que diz, Eu te amo e vou gritar para todo mundo ouvir!
Maturana começa a palestra, ele fala em espanhol. Isso dificulta bastante as coisas pra mim pq eu acabo entendendo somente o que eu já entendo. Ele começa a palestra dizendo algo do tipo, Precisamos sempre termos em mente três coisas. A primeira delas é que nunca as nossas expectativas são correspondidas. Quando ele diz isso, eu tenho uma emoção que irá fundamentar todas as minhas ações subsequentes no âmbito palestra do Maturana do meu presente estrutural.
Começa a rodar uma idéia na minha cabeça que eu tenho que falar alguma coisa. Óbvio que isso gera ansiedade pq, vcs podem nao acreditar, mas eu sou tímido. Eu e o Ney Matogrosso. O fato de eu começar a pensar nisso e a palestra ser em espanhol faz o inevitável em uma mente que pensa, pensa, pensa como a minha, ou seja, manda eu pra longe. Não consigo mais prestar atenção na palestra. Fico olhando pra ele falando, olho pra eu olhando pra ele falando. Bom, pelo menos nao fico no celular escondidinho como o moço metido que está sentado a minha frente. Eu estou aqui, eu quis vir aqui, então é importante que eu esteja aqui, mesmo que eu não esteja. Eu penso.
Maturana, em seus 89 anos e aparentando uma fragilidade física suave que se desfaz quando ele começa a falar, fala quase duas horas em pé, e não sentado na poltrona como programado pela produção, para que, segundos suas proprias palavras, as pessoas possam vê-lo. Mat manja dos paranauê e, por isso, sabe que fomos lá para vê-lo, mesmo que insistamos em dizer que fomos lá para ouví-lo.
Eu, nessa hora, já sei que fui lá para aparecer também. Caso contrário teria prendido em coque minha barba pintada de azul para ela aparecer menos. Mas não é essa a idéia. A emoção que me funda no momento e que cria meu espaço de ações possíveis é esta, aparecer para ele com minha barba azul como se tivesse dizendo, Papá, cómo se hace?
Começa a rodada das perguntas. Versão 2049 da mesma rodada de perguntas que eu aproveitei para sair e comer pão de queijo no filme original de 1983 em BH. Pessoas fazem perguntas. Não sou só eu que quero aparecer para papá. Algumas perguntas têm tantas referências teóricas inseridas nelas, tantas citações de autores que quase dá para perceber que o importante nelas não são as respostas mas sim o olha, papá, como eu fiz a lição de casa. Eu me inscrevo para fazer uma pergunta apesar de ainda nao ter uma pergunta, mesmo depois de mais de vinte anos, para fazer para ele. Tem mais umas três pessoas para perguntar e depois sou eu. Agora, sou pura ansiedade. Sinto meu coração pulsar e as artérias levando sangue e tudo quase saindo pela boca. É a primeira vez que eu sinto meu coração desde que operei em 29 de março deste ano. É ruim mas é bom. Eu me sinto vivo. A emoção é tanta que ela vence os betabloqueadores e eu sinto my refurbished heart vivo e novo. Tenho o microfone nas mãos e estou aguardando minha vez. Eu tenho um compromisso comigo mesmo e com o meu entorno. Eu não sou uma interação instrutiva, mas dou minhas cacetadas. O coração já saiu pela boca faz tempo, sinto meu corpo quase balançar ao sabor da maré sanguínea que vai e volta.
Me lembro da dor. A dor. A angina que eu tive várias vezes em situações semelhantes de estresse. Eu me lembro dela mas ela NÃO está mais aqui agora. Depois de passar no teste da esteira com ultrassom, eu também passo com louvor no teste do estresse psicológico do bem. Quase grito, EU TÔ CURADO! Mas, lembrem-se, eu tô na usp e lá nao é lugar de emoções baratas e nem de milagres evangélicos.
Chegou a minha hora, já repassei minha fala de improviso várias vezes na minha cabeça. Improviso sim, mas improviso de jazz, seguindo a escala. Eu me levanto e tento ser tímido e discreto pq, ninguém resiste ao charme de alguém que tá causando sem querer. Eu digo, Professor, eu não tenho uma pergunta para fazer para o senhor. Eu tenho uma lembrança. Mais de vinte anos atrás eu fui ver o senhor no congresso e (…) não estava entendendo nada (…) sai la fora e quando sai escutei (…). Por isso, hoje o senhor começou sua palestra dizendo que nossas expectativas nunca são correspondidas e eu, modestamente, acredito que tenha uma participação especial nesta frase.
Sim, todo mundo riu e eu fui aplaudido. Desculpa aí III, já que deixei claro qual emoção me movia, não vejo mal algum em dizer que apenas EU e o MATURANA fomos aplaudidos naquele dia. Chuuupa perguntadores compulsivos cheios de referencial teórico. Eu respondi a pergunta, papá, como se háce? Eu fui papá de mim mesmo.
Maturana, óbvio, não entendeu nada da história que eu contei antes da professora traduzir para ele. O que foi uma pena pq minha perfomance, como um filme do woody allen, teria sido mais bem aproveitada na língua original. Enquanto ela traduzia baixinho para ele, só escutei ele dizer, Mas, ele não entendeu nada? A única coisa que ele entendeu, sem tradução, é que eu nao tinha entendido nada. Não vou entrar em maiores detalhes pq este já está o maior textão do universo que você respeita, só vou dizer que é interessante como o observador destaca elementos do todo e os transforma em figura, enquanto que o resto se transforma em fundo.
Depois que ele entendeu o que aconteceu, ele me disse, E mais uma vez as minhas expectativas não foram correspondidas.
E, ao dizer isso, o ciclo se fechou entre eu e ele. O círculo que começou a se formar lá em 1997, quando saí da sala, e terminou agora quando, mesmo sem ainda ter uma pergunta, nao passei direto pelo microfone e falei.
Falei, expliquei, contei e mesmo assim não correspondi aas expectativas dele. Não é maravilhoso?

para Maria José NevesKatia AmorimMaria Clotilde Rossetti Ferreira e Claudia Canato

*agradecimento ao Sérgio Kulpas pelo nome do texto, mesmo sem ele saber que seria o nome do texto.

O Desenho da Karol


Ontem na escola, no sexto ano, a turma estava fazendo um desenho da escultura do Mestre Vitalino chamada Os Retirantes numa versão outro planeta. Ou seja, uma colônia terrestre em Marte percebeu que não poderia mais viver lá e estava se retirando de volta pra Terra em um foguete. O desenho tinha q ter o mesmo número de pessoas q tem na escultura e na mesma posição. Só que estariam com trajes espaciais e tudo mais.
Quando eu cheguei na sala, eles estavam sentados de duplas e trios pq tinham feito uma atividade na aula anterior de produção textual e eu assim os deixei, meio a contragosto pq eles faaaaaaaaaalam muito mais quando ficam juntinhos e felizes. Coisas que eu odeio, falar muito e ficarem felizes.
Mas, como estava num momento de rara bondade, não mexi em nada da disposicao deles pela sala. E como eu também sou um professor bom, eu também deixo escutar música no fone de ouvido enquanto desenham desde que, primeiro, ela esteja baixa o suficiente para eu nao escutar também e, segundo, não compartilhem fone de ouvido sem camisinha pq pode pegar dengue.
Depois de um tempo, dei uns microssurtinhos com gente que estava só no conversê e mandei separar as carteiras dos q nao estavam fazendo nada, só conversando. Olhei lá pro fundo e vi três molekes sentados juntos e o do meio no maior blablabla. Eu ja levantei e falei, Ô fião aí do meio, pode vir para frente pq ta conversando muuito. E o aluno, Mas professor eu estou fazendo, eu só estava explicando como que eu achava q tinha pintar. E eu, Não quero nem saber, pode ir circulando…
Enquanto dizia isso, foi passando pela minha cabeça que quando eu dei uma olhada lá no fundão, o desenho dele estava bem avançado e fui percebendo que estava sendo injusto. Eu não me sinto muito confortável em admitir que estou errado, mas eu não me sinto nem um pouco a vontade em ter sido injusto. Por isso, como professor, tenho feito um auto-trabalho de admitir que estou errado, quando estou errado. Estar certo o tempo todo é muito cansativo, pesa demais. Outro dia mesmo, dei a maior dura em outra aluna em outra classe e quando vi, percebi que estava exagerando. Daí pedi desculpas e disse, Desculpa, eu exagerei e eu confundi você com minha filha pq você fez a mesma cara que ela faz quando estou dando uma dura nela.
Bom, só sei que eu virei pro aluno e disse, Pode voltar lá para junto dos seus amigos, você tem razão, você está desenhando, eu errei, me desculpe, eu vi seu desenho. E ele voltou feliz e com um sorriso de quem deixou de ser injustiçado e isso é bem legal. Não é fácil pra mim, admitir que estou errado e voltar atrás, mas é super legal quando eu consigo.
Tudo isso me fez lembrar do desenho da Karol que eu rasguei quando ela estava no sexto ano e que eu guardo até hoje e que ela, agora na segunda série do ensino médio, sempre me pede para eu levar para ela ver e eu sempre esqueço. Hoje eu lembrei.
Vocês bem sabem que eu, como professor, não chego a ser um psicopata, mas dou umas psicomarrecadas de vez em quando. Uma delas foi com a Karol.
Eu tenho um nervoso de mandar terminar desenho em casa pq, sempre, metade da classe termina e a outra nao termina. Então, numa fatídica aula de arte eu disse, Vocês vão levar os desenhos para casa mas NÃO é para terminar em casa, NÃO é para terminar em casa porque eu vou explicar na próxima aula como tem que pintar o fundo. E lá fomos nós até no proximo encontro.
Na semana seguinte, logo que paro na frente da sala de aula para explicar como iria ser o fundo, vem Karol lá da carteira dela com seu desenho, me mostra ele todo feito e pintado (INCLUSIVE O FUNDO) e diz, Professor, olha o meu desenho como ficou! Eu, enraivecido pela fúria da psicomarrequice, possuído pelo demonho, pego o desenho dela e pico em umas 16 partes enquanto falo pausadamente EU-NAO-FALEI-QUE-NAO-ERA-PARA-PINTAR-O-FUNDO! Cada palavra sincronizada com uma rasgada na folha.
Sim, eu sei, é uma cena pedagogicamente forte e eu nunca mais irei pro céu do paulo freire. Vou pro inferno cheio de freiras, palmatórias e escolas sem partido, eu sei, eu sei.
Mas vocês pensam que acabou nisso? Vocês pensam que não poderia ser pior? Pois foi. Piorou muito ainda.
Com os olhos encharcados de lágrimas, Karol diz pra mim, baixinho e soluçando, Professor, eu sabia que não era para pintar o fundo. Eu não pintei. Este é outro desenho que eu fiz com o mesmo tema em casa. Aquele lá está do jeito que você pediu pra eu deixar. Imediatamente, com mais flechas cravadas no peito que um são sebastião amarrado na árvore, caio no chão de joelhos e peço perdão por ter nascido para ela. Eu chamo a classe, que nem sabia o que estava acontecendo porque tava na balbúrdia do enquanto não começa a aula, e digo, Pessoal, preciso de vocês como testemunhas para o meu pedido de perdão pq eu sou um lixo, um farrapo humano. E pedi desculpas públicas e disse que até o final do ano ela podia ir ao banheiro toda vez q quisesse e tudo que ela falasse ela estava correta. E ainda, ajoelhado, pedi para ela dar na minha cara, mas ela foi fina e disse, Não, professor, isso não é certo!
Bom, só sei que peguei um durex e montei o quebra-cabeça do desenho tudo de novo e pedi para guardar de recordação e ainda pedi uma dedicatória.
Esta foi a maior merda pedagógica que ja fiz na vida, mas também foi o meu melhor conserto de merda pedagógica que já fiz na vida. A Karol deve ter aprendido comigo que eu era loko mesmo e eu aprendi com ela que é preciso escancarar os erros e admiti-los. Mesmo pq, alunos sabem quem é você de verdade. Sabem quando você diz uma coisa mas faz outra. É o seu existir junto deles que pode ensinar alguma coisa para eles. Acredito que a Karol percebeu a burrada que eu fiz, mas também percebeu meu total arrependimento. Aprendemos os dois.
Na aula de hoje, fiquei quietinho esperando o momento, sempre tem este momento, que a Karol diz, Professor e o meu desenho? E eu respondo, Esqueci! Mas, por conta da minha volta atrás com o aluno que estava fazendo o desenho na aula passada e toda a relembrança que aconteceu, eu consegui lembrar de levar. Daí, teve um momento que ela falou, Ah professor, você nao lembra nem de trazer meu desenho, como vai lembrar disso? E eu, Tcha-rãm, saquei do desenho que havia levado e ela adorou e nóis fizemos selfie e eu postei no facebook e as pessoas perguntaram pq eu rasguei o desenho e eu escrevi este textão.
E tudo ainda virou performance, quando ela, lá em 2013, escreveu assim na dedicatória, “professor, vc rasgou mas é como se fosse uma nova moda!!”

 

Meu Mundo Caiu

Hoje de manhã acordei com o firme propósito de levar o joca e depois passar no Savegnago Nove De Julho para comprar carne, molho, cogumelos, creme de leite e batata palha para fazer estrogonofe. Deixei o joca e rumei pro supermercado. Chegando lá, vejo um carro parado na porta do estacionamento que ainda está fechado. Eu penso, ué, será que cheguei muito cedo? Olho pra ver as horas e descubro que são 7:17 e o super continua fechado. Será que mudou o horario de abertura? Será que está sendo assaltado? Torço para ser um assalto, não vou suportar que meu paraíso solitário das compras das manhãs mudou de horário de abertura. Rezo pelo assalto com reféns.
Resolvo aproveitar e caminhar três quarteiroes para depositar um cheque, de uma venda de um desenho, no banco e, com isso, passar o tempo. Vou e volto e tem uma fila já esperando pra entrar. Pergunto pra uma moça q está chegando com uniforme do supermercado e ela confirma o inevitável, Sim, agora abre as sete e meia.
Nãããoooooooo, meu mundo caiu. Fudeu tudo. Como vou fazer compras ligeiras, ao amanhecer, para o almoço e pensar na existência humana e no universo em desencanto ao meu redor de agora em diante? Sete e meia é muito tarde para mim, atrasa tudo, desrregula minha rotina de voltar pra casa, ler o face, escrever alguma coisa, ir pro pilates, deixar coisas no cozimento lento da panela elétrica, voltar, fazer almoço e ligar, ao mesmo tempo, robôs pela casa que aspiram e passam paninho. A onda sísmica é tão grande que até meu querido diário eu sinto ameaçado. O que vou fazer? Não dá para ir ao pão de açúcar, substituir um supermercado pelo outro. No pão de acucar só tem daquelas peruas plastificadas que ornam o colar de bolas gigantes com o tom verde bandeira do vestido classic noveau. Eu tenho ódio e atração por aqueles quilos de botox e massa corrida de cara, sobrepostas. Não, lá não dá.
Até quando eu vou conseguir manter esta felicidade tênue construída sobre um mundo sólido cujos pilares foram fincados em areia movediça? Quando vai acabar meu dinheiro? Ele acaba daqui, aparece dali e eu viveria para sempre assim, se a linguagem que criou uma dobra no existir humano nao me visse existindo o existir que eu vivo existindo. Se esta porra da linguagem não tivesse me dado a consciencia que eu existo e que eu sei disso e consigo me ver vendo que eu existo. Esta porra de linguagem que fundou o tempo dentro e fora de mim e que consegue fazer meu eu sair voando bem alto como um drone teleguiado pela minha consciencia de ter consciencia e lá de cima ver eu no presente, no passado e no futuro. Ah maldita linguagem q me diz, Ó, pode ser que isso não dure tanto como você quer que dure.
A mudança de horário do supermercado mexe com o meu começo de dia que mexe com minha rotina da manhã. Não gosto de mudanças, mas gosto menos ainda de nao ter um lugar para pensar sobre as coisas dentro da minha cabeça e fora dela.
Eu compro tudo que fui lá comprar no supermercado mas, sintomaticamente, não compro nada além do planejado. Saio de lá com exatamente aquilo que planejei comprar. Acho isso um sinal. Acho que eu sei que não vou mais voltar lá com a mesma frequência de antes. Pequenas perturbações no sistema podem causar grandes mudanças em sistemas dinâmicos longe do equilibrio. Chego em casa e vejo três carros estacionados no mesmo quarteirao. Um amarelo, um vermelho e um azul. Muita cor no mesmo lugar quebrando aquela pasmaceira mediana do mundo de gente mediana que compra carro cinza e/ou prata pq o delsmercado disse que tem mais poder de revenda e dai você compra pq você vai trocar de carro no final do ano. Eu penso que é um sinal. Eu vejo sinais nas coisas, eu procuro padrões de sincronicidade nas coisas. Quase nunca eu entendo estes padrões ou mesmo tenho certeza que eles existem. Não importa, ver padrões, sinais nas coisas, para mim, é uma forma de fazer poesia com o cotidiano. É usá-lo como oráculo, o cotidiano.
Recapitulando, o supermercado muda de horário e eu sinto que fiz alicerces sobre areia. Eu chego em casa e meu quarteirao tá colorido pelos carros. O que o cotidiano diferente do cotidiano igual me diz ou tenta dizer? Ele me diz que a linguagem e sua capacidade de projetar o futuro, não garante que vá ser sempre assim, pois as coisas mudam. Mas ele também me diz que se as coisas sólidas fatalmente mudam, elas também podem mudar para melhor, mesmo quando são cinza-prata, homogêneas e monótonas.
E tudo isso que começou com a Maysa, termina com o Wisnik que me diz que se meu mundo cair, eu que aprenda a levitar.