Cigarras não Cantam


Só duas coisas podem animar uma caminhada que se desmorona em desânimo, trans europe express do kraftwerk ou pensamentos de vingaça elaborados e cheios de enauseantes detalhes.
Ontem de manhã, fui fazer minha fisioterapia dedal. No canteiro central, como vocês bem se lembram do penúltimo episódio, tem um caminho de formigas saúvas. Ontem de manhã, elas estavam no fervo, várias carregando pedaços de folhas verdinhas e cantando, eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou. Parei, olhei para elas e resolvi filmar. Depois pensei, Ah, daqui a pouco quando sair da fisio eu gravo.
Hoje de manhã teve volta a caminhar no parque das artes. Adoro a fauna e a flora das caminhadas. Adoro as mocinhas que vão de maquiagem, brincos, anéis, pulseiras e passam perfume pra caminhar. Adoro as 100nossaum que andam no sentido contrário que todas as outras pessoas e ainda vao falando no celular estilo walkie talkie e nem percebem que atrapalham o fluxo. Adoro as três graças que andam uma ao lado da outra numa pista que cabem duas pessoas uma ao lado da outra e andam assim pq elas precisam conversar. Adoro é que não é que elas fazem isso pq são do mal, elas fazem isso pq o mundo ao redor delas nao existe. Adoro os bonito malhado junto com as bonita durinha bronzeada por igual que correm numa velocidade de guepardo ao entardecer na savana africana. Adoro os velhinhos em recuperação, minha categoria, que andam, fazem uns movimentos com os braços pq tudo precisa de ajuda nestes corpos seminovos. Fui disposto a dar uma volta de 1200m e rumar pra casa porque estava muito sem ânimo, mas quase no final da primeira volta, toca trans europe express no meu fone e a batida trem me anima profundamente como sempre faz. Kraftwerk é uma das minhas pouquissimas bandas prediletas que eu posso escutar sempre que eu fico bem. Começo a embalar a caminhada sincronizando com a música. Eu animo e aumento o ritmo. Lembro de pessoas que gostaria de me vingar. Vingancinha básica, pedacinhos cortados passados no azeite e orégano e servidos na festa de final de ano. Pensamentos de vingança também dão um up no caminhar. Recomendo.
Ontem, na fisoterapia, enquanto passavam o ultrassom no meu tendão em gatilho, escuto na baia ao lado o outro fisioterapeuta conversando com a sua paciente, OS brasileiros estão acostumandos (…) OS políticos (…) ELES só querem… Todo discurso dele exclui ele próprio, os brasileiros são (mas ele não é nem o que os brasileiros são e nem brasileiro), os políticos (outro tipo de gente, talvez até outra raça, a qual ele também não pertence). Toda conversa se trata sobre pessoas, sobre um povo cujo sujeito que conversa pensa não pertencer. Ele é apenas o observador que observa uma situação sem ter a mínima participação na construção disso tudo.
Este é o grande problema de nossos discursos, não nos incluimos neles, discursamos como se estivessemos de fora de tudo isso opinando sobre um mundo que veio pronto para nós. Um mundo que nos é pré-dado. Mas as coisas não são bem assim. Maturana escreveu bastante sobre isso. Biologicamente nos é impossível acessar um mundo que não seja o que construímos vivendo nele. Por isso, não existe uma objetividade pq não temos acesso a este mundo objetivo que existe independente do nosso viver/observar este mundo. Nunca temos acesso a objetividade pq a objetividade que vemos e vivemos inclui também o operar nosso como seres vivos. A isto ele chama de (objetividade), ou seja, uma objetividade entre parêntenses. Pq entre parênteses? Porque ela inclui a estrutura biológica e cultural do observador na sua construção.
O fisioterapeuta e nós mesmos, não levamos isso em conta quando falamos do nosso mundo. Aliás, nem é nosso, mas dos brasileiros e dos políticos, mundo ao qual pensamos não pertencer. Ledo engano, nós pertencemos, nós ajudamos a construí-lo e, a cada passo que damos, ou não damos, também fazemos a história. Pensar num mundo que existe objetivamente sem o nosso operar nele é se isentar da responsabilidade sobre ele. Afinal, ele já estava aí antes de nós, quando chegamos, ele nos foi pré-dado e estava pré-pronto.
Se pensarmos que não é assim, que ninguém tem acesso a uma verdade objetiva independente de nosso operar neste mundo, que nada nos é dado, que nosso viver constroi tudo isso, deixamos de ser observadores críticos porém impotentes sobre o operar nosso no viver e passamos a ser construtores e responsáveis por este mundo que construímos ao viver nele junto com os outros.
E assim, nosso discurso de fisoterapeuta dono da verdade, mas impotente perde a razão e a força de ser/não ser. Não existe mais eles, agora existe apenas nós, um conjunto de pessoas diferentes mas pertencentes a um mesmo grupo em que somos todos responsáveis pelo que fazemos ou deixamos de fazer.
Quando eu sai, uns vinte minutos depois do que tinha entrado, e fui procurar o caminho de saúvas carregando folhas verdinhas para filmar, ele já não existia mais. Fiquei revoltado, passei minha infância inteira doutrinado pelo trabalho honesto e proletário dos heminópteros, cultuado em fábulas. Elas já tinham terminado o serviço e, provavelmente, diferente do que a cigarra pensa, estavam todas no buteco do formigueiro tomando uma cerveja de formiga. Até as formigas sabem, trabalho não dignifica nem o homem, nem o humano e nem nenhum ser vivo. Aliás, trabalho só é trabalho pro ser humano, pro resto são apenas necessidades do viver e no manter a sua adaptação em congruência com o meio.
Dou duas voltas na pista, isso intera 2400 metros e ainda tenho três quarteirões de subida até minha casa. Kraftwerk e planos de vingança me salvaram. Agora é só chegar em casa e passar gelatina de banho da lush para sentir cheiros que são arte aroma pro meu sistema límbico. Formigas não trabalham, cigarras não cantam, o mundo humano só é humano para os humanos. Mesmo assim, dentro deste mundo, muito dos humanos insistem em se excluir de tudo que é merda humana pq esta merda não pertence a eles. Pertence sim, fião, afinal,
“Tudo que é humano me comove, porque sou homem. Tudo me comove porque tenho, não uma semelhança com ideias e doutrinas, mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira”. 
Álvaro de Campos.

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