Eu podia ralar queijo nos meus braços


Música é tudo. Já disse isso e torno a dizê-lo. Música e imagem é o tudo mais que tudo ainda. O resto não me interessa. Jamais leria um textão desses que eu escrevo se não fosse eu que tivesse escrito. Ou seja, leio o meu pq é impossível escrever e nao ler ao mesmo tempo. Jamais iria numa exposição de arte que não fosse a minha. Tenho muita preguiça de artes visuais. Minto, exposições com salgadinhos na abertura me atraem. Não necessariamente temos que gostar do que os outros fazem no mesmo campo que q nós fazemos. Mesmo pq, eu geralmente façoescrevopinto pq preciso e não pq gosto.
Gosto de escutar músicas. Gosto muito. Gosto de prestar atençao nas músicas. Geralmente, letras não me interessam muito, gosto mais do sons e da voz palavras sons. Mensagens? Só em caso de extrema necessidade.
Hoje fui de novo ao parque do nãopode, daqui a pouco fico um gato se continuar neste ritmo. Hoje fui disposto a dar duas voltas na pista de 1 km. Esqueci meu boné lawrence, raios, mil vezes raios. Mas minha música estava lá.
Primeiro, toca uma da FKA Twigs que, escutando no fone, parece q tem tres músicas nadaver juntas. Uma batida programada com dislexia, uns sonidos electronicos completamente sem noção e uma textura de cordas sintéticas noutro departamento. Além, óbvio, dela cantando por cima disso tudo.
Minha meta são duas voltas na pista. Na parte que tem sol, sem boné, eu tenho desânimo mas continuo mesmo assim.
Depois do parque, fui levar o Nico na aula com o Paulo, pretendendo passar no pão de açúcar para comprar o limão siciliano, de onde colherei as raspinhas pro arroz doce. Também vou testar a ofertas geradas pelo aplicativo, que eu selecionei.
Tenho que confessar, não suporto o pao de açucar da fiusa. Tem muuuuuuita gente nova de bem. Não é como o da independência que tem só old school. Neste tem a ralé da elite, aquelas mocinhas que se chover morrem afogadas de tanto nariz empinado. Fora os zomi dei um tempo na bolsa e vim comprar uma agua para me hidratar.
Mesmo assim, no meio deste deserto de almas, encontro um oásis marido da minha professora q se foi. Eu não sei o q falar, meio q dou um abraço nele. Ele me diz que gostou do meu texto e que foi muito bom lê-lo. Eu acho q falo alguma coisa, mas não sei ao certo. O pão de açucar ganha alma nesse encontro. As boias do mar estão todas conversando dentro da água, fazendo conexões, se abraçando. Ele tem uma cara calma de quem acabou de passar por um furacão que levou tudo, mas deixou as memórias, as lembranças, as polaroids emocionais que formam no nosso existir juntos, mesmo que agora este existir seja sozinho. Eu adorei este encontro. Rumo em busca do suco de uva integral que está na oferta ativada do meu aplicativo.
Me sinto muito moderno caçando ofertas pré ativadas pelo celular. Vejo outras pessoas andando pelo super com o celular na mão, fazendo o mesmo. Meu celular fica sem serviço dentro do supermercado. Pergunto pro supervisor, como eu faço? Ele diz, Tem que ir lá fora! Me recuso, nao compro, mas também nao vou la fora pegar sinal de celular. O futuro tem um preço. Se eu não consigo ativar este preço, não é futuro. Depois descubro que já tinha ativado as ofertas em casa, então era só dar meu cpf no caixa.
Entro na fila do caixa. Senhoras finas na minha frente têm muita pressa e o caixa, óbvio, emperra. Reclamam que o atendimento dos caixas piorou muito e que elas não vem mais tanto assim no supermercado por conta disso. Me dá um dó delas. Penso em sugerir o savegnago da nove, mas tenho medo do olhar de laser e botox que poderá me derreter. A fila não anda. A moça resolveu pagar com dinheiro mas a caixa nao tinha troco e aquilo q deveria facilitar, só complicou. A cliente fica irritada. Ela usa tons pastéis e um colarzão colorido vitrificado para dar uma quebrada naquele nude geral pasmaceira fina de gente que tem pressa. Eu levanto meu queixo, congelo um sorriso dinâmico nos lábios de quem está tranquilo, nao tem pressa e é superior a todos que estão a minha volta. Pago e minha conta e vou embora.
No meio do caminho de volta, começo a achar q 112 reais ficou muito cara a minha conta. Estaciono o carro e vou conferir a notinha. Não saiu os descontos das três caixas dolce gusto que eu comprei. Eram para sair 16,45 cada e saiu 23,90. Sou tomado pelo espírito das mulheres finas nudes de rabo de cavalo e bolsinha de alça curta segurada no ângulo estilo raiz quadrada formado pela dobra do braço e antebraço. Ameaço gritar em pensamento, algo do tipo, AQUELE ATENDIMENTO DAQUELE SUPERMERCADO É UMA BOSTA, mas me lembro que pode ser que eu não tenha ativado esta oferta antes e por isso que nao saiu com desconto. Por conta disso, resolvo continuar homem de meia idade descolado, humanista, sensível, cronista do cotidiano e esquerdista ao invés de porco coxinha homem de bem mal servido por lacaios. Volto lá pra resolver meu problema. Pulemos esta parte. Tudo fica resolvido e eu saio de lá com as dolce gusto por 16,45.
No meio da tarde tenho meu pilates no prédio anexado ao iguatemi. Sempre fico comovido com aquela fila de gente na polícia federal. Pessoas em pé, pessoas no café tomando um machiatto. Pessoas sendo humilhadas só pq querem renovar o passaporte a tempo de ir pra disney na semana do saco cheio. Para ir pro pilates, tenho que virar a direita bem em frente da pf. No chão, uma moça de legging furta cor espera por sua vez, olhando no celular. Deve fazer três dias q ela está ali pq está sentada no chão, encostada na parede e com as pernas esticadas tomando 60% da possibilidade de passagem livre. Não tenho dúvidas, passo por cima dela, pulando as pernocas esticadas. Uma vez professor construtivista, sempre professor construtivista. Não pesco suas pernas, eu ensino ela a pescar. Ao passar por cima delas, mando a mensagem, comigo deu tudo certo, mas pode ter alguém mais pesado e desastrado do que eu no futuro, fica esperta! Espero andar um pouco e sutilmente olho pra trás. A mocinha continua sentada, mas as pernas estão recolhidas e flexionadas junto ao corpo. Júbilo em ser professor full time.
Marina, minha professora de pilates, parece que se sente estimulada com a minha choramingação de que já tinha andado dois quilometros no parque na parte da manhã e castiga no jump, na motoca e acaba com o que sobrou de mim na manhã.
Chego em casa, ponho o pé no lar e me informam que Sofia já terminou a prova e devo ir buscá-la. Boralá pra escola do zé gotinha pegar filha.
Fim de tarde, sol vermelho de secura e poeira no ar. É lindo, mas dá rinite. Faço o arroz doce da semana, ralo o limão siciliano que fui comprar no pão de açúcar. Logo depois que a bola vermelha vai dormir, rumamos em direção a las forasteras no food park fora de moda e que, por isso, agora está habitável e sentável. Degluto o meu maravilhoso cheeseburguer. Lembro do olho do boi. Maldita Eliane Brum. Nunca mais comi carne sem lembrar de onde ela veio, sem lembrar do olho do boi, atrás do hamburger. Adoro o gosto da carne, mas não me orgulho mais disso. Agora, eu pago o preço dela, a carne, olhando pro olho que me olha. Se vou parar um dia, não sei. Porém, o simples fato de não mais comer esta delícia sem contexto, sem saber de onde veio, já freia uns porcento da minha vontade. Eu gosto disso. Não é um sofrimento ruim, é um sofrimento necessário.
Olho pro lugar cheio de luzes amareladas, mocinhas, mocinhos, casais, famílias, crianças com espada do darth e penso que minha mãe, que adorava um fervo deste tipo, iria gostar deste lugar. Falo pra Claudia e também digo que ela só não iria gostar das desconfortáveis cadeiras. A Claudia responde, Olha ali, mais pra lá tem umas legais! E eu digo, A gente podia trazer aquela almofada de cadeira de casa para ela sentar. Nós nos olhamos todos e damos um sorrisinho saudoso que diz, Como se isso fosse o único obstáculo a ser superado para ela vir aqui conosco. Rimos da felicidade de tê-la tão presente que parece que ela só faltou hoje.
Na hora que bateu um desânimo no calor do parque da manhã, sol na careca sem protetor e tudo mais, tocou kraftwerk no phone. Metal on metal, aquele movimento do trans europe express que simula um trem mudando de trilhos, os barulhos todos que fazem, os freios, as ferragens, o telégrafo. Fones de ouvido são mágicos para quem gosta de escutar tudo numa música, as texturas, as divisoes do sons entre as caixas, os microbarulhinhos ocultos. É fodástico como neste trecho da música, os kraft fazem tanto com tão pouco. Como as batidas minimais se completam em canais diferentes fazendo o som atravessar seu cérebro através das orelhas. Tanto com tão pouco. E tá tudo lá dos trens, de uma viagem de trem. Andei muito de trem na minha infância e parte da adolescência. Eu reconheço os sons, eu escuto e sinto tudo aquilo em forma de lembranças sonoras. Lembro de muito mais, da geléia de mocotó e do guaraná caçulinha que o moço passava vendendo e que eu morria de vontade de comer numa época que morrer de vontade de comer algo não significava muito mais do que simplesmente morrer de vontade de comer alguma coisa.
Tudo está ali junto com as batidas eletroacústicas e os sintetizadores analógicos da banda nesta época. Tudo é um caldo de memórias e sons. Cada um mudando cada um, ressignificando e sendo ressignificado ao mesmo tempo. Eu me sinto no meio de um momento grandioso e orgástico. Um arrepio sobe do cóccix até o pescoço. O arrepio é tão intenso que eu posso ralar queijo nos meus braços.

 

 

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