A Geografia dos Sonhos

Hoje eu acordei, levei o Joca, deixei uns desenhos na escola, um arroz doce pro Varte e sete e meia já estava aqui em casa de novo. Vou sair pra caminhar, mas antes preciso levantar as cadeiras da sala, dos quartos e ligar a roomba para quando eu chegar estar tudo aspirado para que a braava passe o paninho úmido dela na sequencia. Dá uma preguicinha de fazer tudo isso. Não que seja algo trabalhoso, é que sair para caminhar é frágil o suficiente para que eu desista se algo aparecer no meio da minha vontade latejante. Só saio pq escuto músicas. Sem música não vivo. Sem música não caminho, não ando, não mato, não morro.
Como da última vez eu me fudix pq nao levei boné, hoje fui com o meu lawrence legiao estrangeira das arábias comprado na renner faz uns dez anos. É daqueles que tem uma aba que protege o pescoço dos raios ultraviolentos. Traje completo, bermuda de caminhar, camiseta fora temer em várias línguas, crocs básico com padronagem de camuflagem, meu boné lawrence e óculos de sol oakley mano rolezinho de shopping terror da classe média. Deixei a barba solta Confúcio style pra dar uma estranheza no visual estranho. E lá fui eu.
Minhas orelhas receberam elza soares cantando levanta sacode a poeira e dá volta por cima q tem um rapper que canta com ela em francês. Já animei. Meus passos animaram. Tá certo que era descida. Só eu q acho q no maravilhoso A Mulher do fim do mundo, parece q a Elza não está muito lá junto com os músicos? Não sei explicar, vão me crucificar por isto, eu sinto q ela não tá lá, que não sente a música. Ou melhor, que a música passa por ela e ela não transforma a música como fez em todos os seus outros discos.
Eu chego no parque do não pode. Adoro a fauna que anda corre por lá. Tem umas mocinhas que ornam tudo. Tem camisetas customizadas. Tem gnt que passa PERFUME e vai correr. Graças aos céus, o desgraçado que me deu o cartão obesidade/terceira idade não tava lá. Meu boné faz sucesso comigo mesmo, o sol não arde nem na careca e nem no pescoço.
Lembro que sonhei com aquela parte da cidade antes da rodoviária, aquela rua antes do mercadão. Nos meus sonhos existe uma geografia particular deles. Sempre sonho com lugares específicos de Ribeirão e eles são diferentes da vida real. Mas possuem sempre um mesmo estilo para servir de cenário para meus sonhos. Uma arquitetura específica, um espaço urbano onírico.
Sonhei que andava pelas lojas de perto da rodoviária, sempre é noite ou madrugada. Sonho muito também com a Francisco Junqueira e com o rio dela. Nos meus sonhos, as vezes passam barcos nele, outra vezes é muito dificil de atravessá-lo pq as pontes sao estreitas demais ou estão para cair. Quando eu era pequeno e morava no campos elíseos, atravessar o rio era estar no centro, era ser grande e adulto e responsável pelos seus atos. Volta e meia eu sonho com esta travessia. Sonho com as lojas americanas, o cine centenario e as ruas da proximidade, o terminal de onibus que ali existia. Sempre é noite, muitas vezes tem muitas luzes de enfeite nas ruas, cafés, sorveterias como se aqui fosse Búzios, ou melhor, o que eu imagino que seja Búzios pq nunca fui lá. Sonho muito com a vila seixas praça sete perto do hc e rua joão bim que é tudo um lugar só, cheio de armazens e lojas perdidas no tempo. Lojas que parecem mercearias ou que vendem arte comida e artesanatos interessantes. Sempre é noite na minha geografia dos sonhos, mas não necessariamente é escuro. Quase sempre é cheio de luzes e sons e pessoas como num daqueles quadros impressionistas de cenas noturnas da cidade.
Resolvi voltar da caminhada um pouco antes, pois, última vez que, esbaforido, ainda tive que andar mais quatro quarteirões de subida até minha casa. Toca uma musica da Elza do disco da mulher do fim do mundo. Eu escuto e repenso o que tinha pensado no começo desta crônica. Acho que estava louco naquele momento que pensei aquilo.
Mudar e repensar é vital para minha vida. Pra mim, isso é movimento. Quando você pensafala sempre a mesma coisa e do mesmo jeito, esta mesma coisa já ficou lá atrás. E você veio, mas também ficou lá. O mundo muda de pouco em pouco, muito pouco. De repente vem uma onda destes q ficaram lá pra trás e derruba tudo. É o papel deles tentar estabilizar o caos. Eu sou o caos ou pelo menos queria ser. Não é em conteúdo que nosso mundo piora, é em possibilidade de expressão do que existe de mais egoísta e baixo em nós, sem consequências. O cantor ofende a artista pq ela defende a liberdade de expressão. Então ele pega uma foto dela e desenha um pinto em cima da foto e escreve puta. É a forma dele mostrar que se na arte pode tudo, então ele pode fazer isso com a foto dela. Tem dois erros nesse caso. O primeiro deles é que apesar de que realmente se pode fazer (quase) tudo em arte, isso que ele fez não é arte, nao pq ficou ruim, mas pq a intenção dele não era fazer arte e sim agredir alguém. O segundo deles é q o pinto dele que eu vi na G magazine é muito menor que o que ele desenhou na ofensa. Propaganda enganosa.
Mas pq ele fez isso e postou no twiter sem ao menos passar pela cabeça dele a vergonha alheia que isso iria gerar? Pq pessoas vem até meus posts falar umas asneiras e serem esculachadas pelos uzamigo meus e mesmo assim vem e falam asneiras? A resposta é o respaldo social. Vivemos uma época em que toda a merda escapou da caixa de pandora e tudo pode. Nem a esperança que, teoricamente teria ficado presa na caixa, aguentou e tb foi embora. O mundo mudou, mas as pessoas não mudaram. O mundo quer isso das pessoas, o mundo dá para elas a possibilidade delas mostrarem o seu pior em sua plenitude de baixeza e egoísmo. O mundo sabe que se não der isso pra elas, se nao der a possibilidade de viverem sua própria sodoma e gomorra conceitual de condominio fechado, em breve não mais as terá. Então dancem pessoas lindas, dancem em nome do Senhor. Dancem como se não houvesse amanhã. Pq o seu júbilo hoje é de Deus mas, com certeza, quem patrocina os anúncios do intervalo é o Demônio.
Júbilo eu sinto na hora que volto pra casa ao tocar let’s dance nas minhas orelhas. Confesso, comecei a gostar realmente do David Bowie no let’s dance, na fase que ele fez sucesso de público e caiu na dança ancorado pelo Nile Rodgers. Este foi o álbum dele que escutei e dancei até a última gota. Depois, aprendi a gostar dos outros. E foi justo essa que começou a tocar na hora da volta pro lar.
A iluminação da hora do dia, o céu azul, os ipês pompons rosa e rosa claro, alternados, deixando um rastro de neve pétalas no chão de grama meio seca de estiagem. A batida da bateria, o baixo pulsante, as árvores em flor e eu olhando para elas entre luzes impressionistas. A geografia impressionista urbana de luzes dos meus sonhos, em uma versão matinal, ao vivo e a cores. David pede para eu colocar meus sapatos vermelhos e cair no blues. Pede para eu me mexer, dançar, enquanto as cores iluminam minha face. Eu toco air bass, eu toco air drums, eu olho pros ipês. Eu tô de crocs camuflado e isso deve ser ótimo pra dançar o blues.
Meu êxtase é diferente do júbilo do iguais. Meu êxtase é Santa Tereza de Bernini sendo flechada pela seta flamejante de som let’s dance e luz matinal.
Invadido por uma extrema felicidade eu chego em casa. Tinha motivos para estar triste, mas estou feliz. Tenho motivos para estar feliz, mas poderia estar triste. Tudo vive, ao mesmo tempo, dentro e fora de mim. Não sei como comandar isso, como entender estas compreensões do todo que vêm de supetão, mistura de música, endorfina e luz. O mundo da noite nos sonhos. O mundo do dia no dia acordado. Por uma fração de tempo que eu não sei qual é, tudo se junta num êxtase. “…e o sol então nos encontrará, pela madrugada. De mãos dadas como num conto de fadas. Cor de jade e de marfim, nos invade, amor sem fim. Felicidade é uma coisa assim!”

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