Maturana 2049*


Ontem foi uma segunda especial para mim pois fui ver o Humberto Maturanaem uma palestra na usp, mais de vinte anos após ter ido vê-lo em BH no I Congresso de Autopoiese. A história deste congresso é engraçada. Eu fazia pós-doutoramento no CINDEDI da FFCLRP e a Clotilde me disse, Olha este pensador, ele veio da Biologia, acho q você vai gostar da teoria dele. Ela me disse isso pq eu também tinha vindo das biológicas e tinha caído lá, no desenvolvimento humano sócio-interacionista cuja parte construtivista também vinha de um cara que veio da biologia, o arroz de festa das escolinhas infantis, Jean Piaget.
Então, eu estava em boa companhia. Piaget, Maturana e Vasconcelos. Desculpa aí.
Bom, mas a Clotilde achar que seria mais fácil eu entender o Maturana pq eu também tinha vindo da neurofisiologia como ele (desculpa aí II, a missão) foi uma dedução lógica dela, mas que teve pouco a ver com a realidade. Eu não entendia nada do que ele escrevia. Mesmo tendo começado pelo livro paulo coelho dele, escrito junto com o Varela, A Árvore do Conhecimento, bastavam dois parágrafos e eu já voava para longe, pensando em coisas mais palatáveis como música, filmes e coisas pra comprar no supermercado.
Suei muito para entender o básico da teoria dele. Por isso, ontem, na palestra, ao ver pessoas tendo dúvidas para perguntar para ele, admirei a ilusão delas ao achar que sabiam o suficiente para ter dúvidas.
Mas, voltando aos vinte e tantos anos no passado, lá, eu tomei como questão de honra entender a teoria dele. Também, como uma Scarlet O’Hara epistemológica, jurei que o dia que entendesse, eu faria de tudo para ser didático e (objetivo) para que as pessoas que estivessem interessadas também pudessem entender.
Naquela época, lá fomos nós, eu e a Claudia, para BH para ver e ouvir e não entender merda nenhuma sobre cogniçao, autopoiese e biologia do conhecimento.
Neste congresso, aconteceu uma passagem que já faz parte do meu folclore pessoal e que eu já contei em outro textão, tenho quase certeza absoluta. Porém, vou ter que contá-la novamente, pois este Maturana 2049 precisa ser entendido sob a luz dos acontecimentos do primeiro filme de 1997.
No filme original, Maturana dava sua palestra em inglês em um grande anfiteatro cujas saídas ficavam na frente, nas laterais do palco. Ele falava sobre acoplamento estrutural, sobre estar em congruência com a sua circunstância, sobre a clausura operacional e eu escutando a tradução simultânea para o português em fones de ouvido. Meus pensamentos iam e voltavam quando algo aconteceu. Olhei lá para fora, pelas portas lateriais que estavam abertas e vi um coffe break com pão de queijo e bolachinhas sendo instalado. Acordei de vez, agora movido pela fome e pela necessidade de sair da palestra que não estava entendendo nada, para comer alguma coisa.
Minha mente começou a elaborar estratégias possíveis de saída discreta e a mais brilhante idéia que eu tive, meu plano infalível foi: Maturana está respondendo perguntas da platéia, as pessoas interessadas em perguntar alguma coisa vão até o microfone instalado perto do palco e perguntam. Já sei, quando ele acabar de responder a uma pergunta, no intervalo entre uma pessoa e outra, eu saio e vou lá fora comer pão de queijo. Vou com o meu fone e continuou a escutar a palestra.
Plano perfeito, todos estarão prestando atenção no próximo perguntador e eu saio discretamente sem ninguém me ver. Era só esperar o momento oportuno.
Maturana pergunta, Mais alguma pessoa? E o imbecil aqui, achando que ninguém iria notar, levanta e vai descendo pelas escadas laterais rumo ao coffe break. A Claudia tem um surto e pensa, Como que ele vai fazer alguma pergunta e se ele não tá entendendo nada deçaporra? Uma outra pessoa se levanta e vai em direção ao microfone. Maturana faz um gesto para ela esperar pq eu tinha me levantado primeiro. Eu, alheio a tudo que se passa a minha volta, continuo descendo em direção aa porta mas, para o resto do auditório lotado, estou indo em direção ao microfone. Todos olham pra mim, só eu que não. Eu olho pras bolachinhas lá fora. Eu passo pelo microfone e saio pela porta. TODOS estão esperando eu fazer uma pergunta e eu passo reto e vou lá para fora. Quando chego lá, escuto pela tradução simultânea a voz dele dizendo, Não é maravilhoso como nossas expectativas nem sempre são correspondidas! E o auditório cai na gargalhada. E a minha ficha cai e eu percebo que era de mim que ele estava falando. Olho lá para dentro e vejo a Claudia lá no fundo fazendo sinais discretos que eu traduzo por, Não volta aqui! E se voltar, não senta perto de mim! E eu não volto. Enfrentar o Mat eu até enfrentava, mas a Claudia já ia ser bem mais complicado. Depois, um pouco muito depois, quando já entendia a biologia do conhecer o suficiente para ter dúvidas, eu usei esta frase do Maturana em meu trabalho de pósdoc sobre interações de bebês em creche e os possíveis múltiplos olhares sobre isso.
Ontem, antes da palestra, de manhã, fui fazer fisioterapia pro meu dedo em gatilho sequela sabedelspq da minha cirurgia cardíaca. Ao atravessar a avenida, no canteiro central, no meio da grama, vi uma trilha de não-grama feita pelas formigas que passam sempre pelo mesmo caminho. O ser vivo e seu entorno. Acoplamento estrutural. As ações recorrentes do vivo em seu entorno. Muda o ser vivo, muda seu entorno. Enquanto os dois permanecerem em congruência no aqui agora, o vivo permanece vivo.
Entro na sala imensa de fisoterapia, várias pessoas fazendo várias coisas. Parece um filme surrealista de Buñuel. Uma academia de ginástica do universo paralelo de fringe onde as pessoas quase não se movem, ficam paradas em posições não naturais. Uma anti-academia da vida cotidiana. Pessoas encostadas nas paredes alongando um ombro, pessoas deitadas em colchonetes esticando pernas. Tudo quase uma fotografia. Tudo quase me revelando um outro lado do que está aqui e agora. Uma outra leitura possível do que é ser o que somos.
No final da tarde, zarpamos em direção ao Maturana. Eu e a Claudia numa versão mais de vinte anos depois do mesmo Eu e a Claudia de Belo Horizonte. Somos nosso próprio Blade Runner 2049. Estamos agora dirigindo e atuando na nossa continuação.
Quando estamos chegando na USP, digo pra Claudia, Lembra quando viviamos aqui e pensávamos que seria para sempre? Agora, dentro da minha cabeça o campus de agora se sobrepõe ao campus de minha época como Joi+Prostituta transando com K. O lugar da palestra já foi o Santander e antes já foi o Banespa onde eu já fiz exposição de pinturas quando lá tinha uma galeria de arte. Uma exposição onde o Flavio D’Andrea, que dels o tenha, e digo dels e nao o diabo pq nao quero encontrar com ele no inferno, fez uma análise psicológica pública de minha pessoa de 19 aninhos dizendo que seu eu não pintasse eu seria um estuprador. Hoje, quase quarenta anos depois, eu continuo a discordar dele. Acho que se eu não pintasse, eu seria um serial kiler, muito mais divertido. Bom, mas isso é assunto para outro querido diário. O lugar ainda continua lindo. Pura parede de vidro preenchida pelo verde da USP.
Estamos sentados na ponta, perto da parede de vidro. Eu vejo Maturana chegando de mansinho com seus 89 anos, quietinho, com olhar de quem vê além e aquém. Ele está a menos de dois metros de mim, dando uma sacada no ambiente. Tenho vontade de pular da cadeira e cair de joelhos aos seus pés, fazendo referências proto-indígenas-povos-menos-desenvolvidos-tecnologicamente e dizendo uga-uga-uga-humberto! Óbvio que não faço nada disso, eu estou na USP e aqui não pega bem demonstrar sentimentos, somente razões, mesmo que estas razões sejam encharcadas de emoções baixas e mesquinhas. Eu, pelo menos, sei que minha emoção por ele orna com a aquela música do Roupa Nova que diz, Eu te amo e vou gritar para todo mundo ouvir!
Maturana começa a palestra, ele fala em espanhol. Isso dificulta bastante as coisas pra mim pq eu acabo entendendo somente o que eu já entendo. Ele começa a palestra dizendo algo do tipo, Precisamos sempre termos em mente três coisas. A primeira delas é que nunca as nossas expectativas são correspondidas. Quando ele diz isso, eu tenho uma emoção que irá fundamentar todas as minhas ações subsequentes no âmbito palestra do Maturana do meu presente estrutural.
Começa a rodar uma idéia na minha cabeça que eu tenho que falar alguma coisa. Óbvio que isso gera ansiedade pq, vcs podem nao acreditar, mas eu sou tímido. Eu e o Ney Matogrosso. O fato de eu começar a pensar nisso e a palestra ser em espanhol faz o inevitável em uma mente que pensa, pensa, pensa como a minha, ou seja, manda eu pra longe. Não consigo mais prestar atenção na palestra. Fico olhando pra ele falando, olho pra eu olhando pra ele falando. Bom, pelo menos nao fico no celular escondidinho como o moço metido que está sentado a minha frente. Eu estou aqui, eu quis vir aqui, então é importante que eu esteja aqui, mesmo que eu não esteja. Eu penso.
Maturana, em seus 89 anos e aparentando uma fragilidade física suave que se desfaz quando ele começa a falar, fala quase duas horas em pé, e não sentado na poltrona como programado pela produção, para que, segundos suas proprias palavras, as pessoas possam vê-lo. Mat manja dos paranauê e, por isso, sabe que fomos lá para vê-lo, mesmo que insistamos em dizer que fomos lá para ouví-lo.
Eu, nessa hora, já sei que fui lá para aparecer também. Caso contrário teria prendido em coque minha barba pintada de azul para ela aparecer menos. Mas não é essa a idéia. A emoção que me funda no momento e que cria meu espaço de ações possíveis é esta, aparecer para ele com minha barba azul como se tivesse dizendo, Papá, cómo se hace?
Começa a rodada das perguntas. Versão 2049 da mesma rodada de perguntas que eu aproveitei para sair e comer pão de queijo no filme original de 1983 em BH. Pessoas fazem perguntas. Não sou só eu que quero aparecer para papá. Algumas perguntas têm tantas referências teóricas inseridas nelas, tantas citações de autores que quase dá para perceber que o importante nelas não são as respostas mas sim o olha, papá, como eu fiz a lição de casa. Eu me inscrevo para fazer uma pergunta apesar de ainda nao ter uma pergunta, mesmo depois de mais de vinte anos, para fazer para ele. Tem mais umas três pessoas para perguntar e depois sou eu. Agora, sou pura ansiedade. Sinto meu coração pulsar e as artérias levando sangue e tudo quase saindo pela boca. É a primeira vez que eu sinto meu coração desde que operei em 29 de março deste ano. É ruim mas é bom. Eu me sinto vivo. A emoção é tanta que ela vence os betabloqueadores e eu sinto my refurbished heart vivo e novo. Tenho o microfone nas mãos e estou aguardando minha vez. Eu tenho um compromisso comigo mesmo e com o meu entorno. Eu não sou uma interação instrutiva, mas dou minhas cacetadas. O coração já saiu pela boca faz tempo, sinto meu corpo quase balançar ao sabor da maré sanguínea que vai e volta.
Me lembro da dor. A dor. A angina que eu tive várias vezes em situações semelhantes de estresse. Eu me lembro dela mas ela NÃO está mais aqui agora. Depois de passar no teste da esteira com ultrassom, eu também passo com louvor no teste do estresse psicológico do bem. Quase grito, EU TÔ CURADO! Mas, lembrem-se, eu tô na usp e lá nao é lugar de emoções baratas e nem de milagres evangélicos.
Chegou a minha hora, já repassei minha fala de improviso várias vezes na minha cabeça. Improviso sim, mas improviso de jazz, seguindo a escala. Eu me levanto e tento ser tímido e discreto pq, ninguém resiste ao charme de alguém que tá causando sem querer. Eu digo, Professor, eu não tenho uma pergunta para fazer para o senhor. Eu tenho uma lembrança. Mais de vinte anos atrás eu fui ver o senhor no congresso e (…) não estava entendendo nada (…) sai la fora e quando sai escutei (…). Por isso, hoje o senhor começou sua palestra dizendo que nossas expectativas nunca são correspondidas e eu, modestamente, acredito que tenha uma participação especial nesta frase.
Sim, todo mundo riu e eu fui aplaudido. Desculpa aí III, já que deixei claro qual emoção me movia, não vejo mal algum em dizer que apenas EU e o MATURANA fomos aplaudidos naquele dia. Chuuupa perguntadores compulsivos cheios de referencial teórico. Eu respondi a pergunta, papá, como se háce? Eu fui papá de mim mesmo.
Maturana, óbvio, não entendeu nada da história que eu contei antes da professora traduzir para ele. O que foi uma pena pq minha perfomance, como um filme do woody allen, teria sido mais bem aproveitada na língua original. Enquanto ela traduzia baixinho para ele, só escutei ele dizer, Mas, ele não entendeu nada? A única coisa que ele entendeu, sem tradução, é que eu nao tinha entendido nada. Não vou entrar em maiores detalhes pq este já está o maior textão do universo que você respeita, só vou dizer que é interessante como o observador destaca elementos do todo e os transforma em figura, enquanto que o resto se transforma em fundo.
Depois que ele entendeu o que aconteceu, ele me disse, E mais uma vez as minhas expectativas não foram correspondidas.
E, ao dizer isso, o ciclo se fechou entre eu e ele. O círculo que começou a se formar lá em 1997, quando saí da sala, e terminou agora quando, mesmo sem ainda ter uma pergunta, nao passei direto pelo microfone e falei.
Falei, expliquei, contei e mesmo assim não correspondi aas expectativas dele. Não é maravilhoso?

para Maria José NevesKatia AmorimMaria Clotilde Rossetti Ferreira e Claudia Canato

*agradecimento ao Sérgio Kulpas pelo nome do texto, mesmo sem ele saber que seria o nome do texto.

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