Narciso visto pelos peixes, 2018

Narciso visto pelos peixes, escrita e colagem s/ tela, 40 x 30 cm, 2018

Fui convidado em dezembro do ano passado, junto com mais nove artistas para participar de uma exposição de arte que aconteceria simultaneamente o Congresso Internacional de Psicanálise Bion 2018 aqui em ribeirao. A proposta era q cada um dos artistas criasse uma tela cujo tema seria o mesmo do congresso, ou seja, Pensamentos Selvagens. Uma videomaker registraria o processo criativo de cada um dos artistas e criaria um video que seria exibido na abertura do congresso junto com as telas feitas pelos artistas convidados.
Óbvio I que nenhum dos artistas receberia nenhuma ajuda de custo para se dedicar ao processo criativo de cosntruir e estar envolvido com este projeto durante praticamente seis meses até o dia do congresso.
Óbvio II que eu achei uma proposta quase pornográfica essa que fizeram pra mim e para os outros artistas, só confiando no nosso narcisismo de ser visto em ambiente tão acadêmico, renomado e sacerdotal e ainda com a possibilidade sedutora de ter nosso trabalho vendido durante o evento, sem ter nenhuma ajuda de custo para isso em um congresso em que o valor final e cheio da inscrição para participar como ouvinte beirava os quase 1.200 reais.
Eu pensei em não aceitar o convite, mas depois pensei q devido a minha longa historia de artista polêmikah eu deveria fazer algo mais legal, ja que o tema Pensamentos Selvagens me permitia tal devaneio. Assim, minha tela “Narciso visto pelos peixes” foi feita com os pensamentos mais selvagens e nao reprimidos que eu tive sobre a situação vexamosa de ser convidado pra trabalhar de graça pq artista vive de vento no imaginário popular (e acadêmico). Só pra satisfazer meu narcisismo.
Óbvio IV que resolvi satisfazer meu narcisismo aparecendo de outra maneira neste congresso. É por isso que a tela se chama Narciso visto pelos peixes. É o momento em que narciso afunda na agua, apaixonado por sua imagem mas visto pela ótica dos peixes. É o peixe que está vendo o narciso vendo sua imagem. Sou eu que pego a sedução do convite feito pra mim artista narcisista e mostro que quem propoe tamanha obscenidade só propoe isso, só tem coragem de propor isso, pq é muito mais narcisista do que aquele que ele tenta seduzir.
Pensamentos selvagens, justo pra mim, pediram isso. Não foi facil, e foi bom que nao foi. É foda escrever o que vc está pensando sem censura e saber que quando sair de vc estará no mundo, neste mundo polido e educado das conversas sociais que sao construidas sobre estes pensamentos.
Ainda como parte do conceito da tela, o valor dela foi calculado da mesma maneira que eu calculo o valor de venda do meu arroz doce, ou seja, o valor do que eu gastei materialmente falando multiplicado por 3 para incluir o trabalho e o lucro no valor final. O preço da minha obra ficou, usndo este calculo, em R$ 41,70 que poderiam ser pagos em 3 x de 15 reais se fosse o caso. Eu vendi a tela e o comprador me perguntou se era este valor mesmo. Eu disse que sim, que se nao fosse nao teria graça. E também disse que nao poderia ser arredondado. Ele comprou a tela e eu tenho um recibo da transferencia que ele fez pra minha conta neste exato valor de 41,70 que agora também faz parte da historia da obra.

Cleido Vasconcelos

 

Ao me deparar com essa tela pela primeira vez, com fita crepe e rabiscos de caneta, tive a impressão de uma birra ou esperneio, de uma inquietação expelida de qualquer jeito. De forma muito semelhante, fiquei eu com essa impressão imediata, sem pensá-la direito, de qualquer jeito.

À medida em que o evento transcorria, observei certas falas muito racionalizadas, sobre temas que mais me pareciam estéticos, afetivos. Bion descreve um funcionamento protomental, quando não se tolera mudanças ou um contato mais próximo com a realidade. Há uma atitude de enganar-se, frente aos pensamentos que invadem o humano. Seria a tela algo expelido, ou teria sido eu quem a expeli de imediato, num enganar-me?

Lembro-me do vídeo da composição das obras. O artista falava, falava tanto, que essa parte foi divertidamente acelerada. Parecia haver bastante pensar, sonhar, processo. Há, entre as canetadas, uma proposição que atrela o conceito da obra a um valor de venda incomum. Resolvi permitir-me tocar por ela, e entrar em contato com o artista.

A princípio, perguntei-lhe apenas se o valor era aquele mesmo. Eis que sua resposta foi comprometida, não aceitando um centavo a mais ou a menos. Uma frase me saltou aos olhos, “mas que graça teria”. A reflexão sobre o próprio narcisismo é rica, demonstra honestidade. Mas Cleido, não acho que foi só por isso que você decidiu ir à frente com a proposta (ainda que pornográfica). Penso ter visto muito compromisso com a realidade de suas emoções.

Há muito mais que narcisismo, existe uma experiência estética de encontrar a expressão genuína da realidade de seu viver. Há sim muita graça nisso. Narciso é visto pelos peixes, e da fantasia é feita realidade, espontânea e verdadeira. Obrigado.

Edson Detregiachi 

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