O Desenho da Karol


Ontem na escola, no sexto ano, a turma estava fazendo um desenho da escultura do Mestre Vitalino chamada Os Retirantes numa versão outro planeta. Ou seja, uma colônia terrestre em Marte percebeu que não poderia mais viver lá e estava se retirando de volta pra Terra em um foguete. O desenho tinha q ter o mesmo número de pessoas q tem na escultura e na mesma posição. Só que estariam com trajes espaciais e tudo mais.
Quando eu cheguei na sala, eles estavam sentados de duplas e trios pq tinham feito uma atividade na aula anterior de produção textual e eu assim os deixei, meio a contragosto pq eles faaaaaaaaaalam muito mais quando ficam juntinhos e felizes. Coisas que eu odeio, falar muito e ficarem felizes.
Mas, como estava num momento de rara bondade, não mexi em nada da disposicao deles pela sala. E como eu também sou um professor bom, eu também deixo escutar música no fone de ouvido enquanto desenham desde que, primeiro, ela esteja baixa o suficiente para eu nao escutar também e, segundo, não compartilhem fone de ouvido sem camisinha pq pode pegar dengue.
Depois de um tempo, dei uns microssurtinhos com gente que estava só no conversê e mandei separar as carteiras dos q nao estavam fazendo nada, só conversando. Olhei lá pro fundo e vi três molekes sentados juntos e o do meio no maior blablabla. Eu ja levantei e falei, Ô fião aí do meio, pode vir para frente pq ta conversando muuito. E o aluno, Mas professor eu estou fazendo, eu só estava explicando como que eu achava q tinha pintar. E eu, Não quero nem saber, pode ir circulando…
Enquanto dizia isso, foi passando pela minha cabeça que quando eu dei uma olhada lá no fundão, o desenho dele estava bem avançado e fui percebendo que estava sendo injusto. Eu não me sinto muito confortável em admitir que estou errado, mas eu não me sinto nem um pouco a vontade em ter sido injusto. Por isso, como professor, tenho feito um auto-trabalho de admitir que estou errado, quando estou errado. Estar certo o tempo todo é muito cansativo, pesa demais. Outro dia mesmo, dei a maior dura em outra aluna em outra classe e quando vi, percebi que estava exagerando. Daí pedi desculpas e disse, Desculpa, eu exagerei e eu confundi você com minha filha pq você fez a mesma cara que ela faz quando estou dando uma dura nela.
Bom, só sei que eu virei pro aluno e disse, Pode voltar lá para junto dos seus amigos, você tem razão, você está desenhando, eu errei, me desculpe, eu vi seu desenho. E ele voltou feliz e com um sorriso de quem deixou de ser injustiçado e isso é bem legal. Não é fácil pra mim, admitir que estou errado e voltar atrás, mas é super legal quando eu consigo.
Tudo isso me fez lembrar do desenho da Karol que eu rasguei quando ela estava no sexto ano e que eu guardo até hoje e que ela, agora na segunda série do ensino médio, sempre me pede para eu levar para ela ver e eu sempre esqueço. Hoje eu lembrei.
Vocês bem sabem que eu, como professor, não chego a ser um psicopata, mas dou umas psicomarrecadas de vez em quando. Uma delas foi com a Karol.
Eu tenho um nervoso de mandar terminar desenho em casa pq, sempre, metade da classe termina e a outra nao termina. Então, numa fatídica aula de arte eu disse, Vocês vão levar os desenhos para casa mas NÃO é para terminar em casa, NÃO é para terminar em casa porque eu vou explicar na próxima aula como tem que pintar o fundo. E lá fomos nós até no proximo encontro.
Na semana seguinte, logo que paro na frente da sala de aula para explicar como iria ser o fundo, vem Karol lá da carteira dela com seu desenho, me mostra ele todo feito e pintado (INCLUSIVE O FUNDO) e diz, Professor, olha o meu desenho como ficou! Eu, enraivecido pela fúria da psicomarrequice, possuído pelo demonho, pego o desenho dela e pico em umas 16 partes enquanto falo pausadamente EU-NAO-FALEI-QUE-NAO-ERA-PARA-PINTAR-O-FUNDO! Cada palavra sincronizada com uma rasgada na folha.
Sim, eu sei, é uma cena pedagogicamente forte e eu nunca mais irei pro céu do paulo freire. Vou pro inferno cheio de freiras, palmatórias e escolas sem partido, eu sei, eu sei.
Mas vocês pensam que acabou nisso? Vocês pensam que não poderia ser pior? Pois foi. Piorou muito ainda.
Com os olhos encharcados de lágrimas, Karol diz pra mim, baixinho e soluçando, Professor, eu sabia que não era para pintar o fundo. Eu não pintei. Este é outro desenho que eu fiz com o mesmo tema em casa. Aquele lá está do jeito que você pediu pra eu deixar. Imediatamente, com mais flechas cravadas no peito que um são sebastião amarrado na árvore, caio no chão de joelhos e peço perdão por ter nascido para ela. Eu chamo a classe, que nem sabia o que estava acontecendo porque tava na balbúrdia do enquanto não começa a aula, e digo, Pessoal, preciso de vocês como testemunhas para o meu pedido de perdão pq eu sou um lixo, um farrapo humano. E pedi desculpas públicas e disse que até o final do ano ela podia ir ao banheiro toda vez q quisesse e tudo que ela falasse ela estava correta. E ainda, ajoelhado, pedi para ela dar na minha cara, mas ela foi fina e disse, Não, professor, isso não é certo!
Bom, só sei que peguei um durex e montei o quebra-cabeça do desenho tudo de novo e pedi para guardar de recordação e ainda pedi uma dedicatória.
Esta foi a maior merda pedagógica que ja fiz na vida, mas também foi o meu melhor conserto de merda pedagógica que já fiz na vida. A Karol deve ter aprendido comigo que eu era loko mesmo e eu aprendi com ela que é preciso escancarar os erros e admiti-los. Mesmo pq, alunos sabem quem é você de verdade. Sabem quando você diz uma coisa mas faz outra. É o seu existir junto deles que pode ensinar alguma coisa para eles. Acredito que a Karol percebeu a burrada que eu fiz, mas também percebeu meu total arrependimento. Aprendemos os dois.
Na aula de hoje, fiquei quietinho esperando o momento, sempre tem este momento, que a Karol diz, Professor e o meu desenho? E eu respondo, Esqueci! Mas, por conta da minha volta atrás com o aluno que estava fazendo o desenho na aula passada e toda a relembrança que aconteceu, eu consegui lembrar de levar. Daí, teve um momento que ela falou, Ah professor, você nao lembra nem de trazer meu desenho, como vai lembrar disso? E eu, Tcha-rãm, saquei do desenho que havia levado e ela adorou e nóis fizemos selfie e eu postei no facebook e as pessoas perguntaram pq eu rasguei o desenho e eu escrevi este textão.
E tudo ainda virou performance, quando ela, lá em 2013, escreveu assim na dedicatória, “professor, vc rasgou mas é como se fosse uma nova moda!!”

 

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