Sonhei com o Bundão

Sonhei com o bundão e nem era o da Anitta. Falei um monte de merda para ele e ele falou um monte de merda pra mim. Das merdas que ele me falou, muitas ele também tinha razão. A principal delas é que um ano depois eu ainda to gastando meu inconsciente sonhando com o bundão e sua turma educacional.
No final da conversa, ele abriu a camisa e me mostrou uma cicatriz no peito dizendo, Eu também operei do coração. Eu olhei para cicatriz e percebi que ela era menor que a minha e tinha o formato de um Y. Igual a das autopsias.
Eu não gosto mais de natal. Tenho esperneado para aceitar isso, finjo que ainda gosto, mas não gosto. Depois de adulto, até uma certa idade, eu gostava da espera e da reunião da familia e amigos próximos. Quando vieram os filhos, eu continuei a gostar por conta deles, do barato que é ser papai noel de verdade para eles.
Ontem, no dia de natal, voltando de Gavião pela estrada, tocou o Carlos Galhardo cantando Nancy no cd de mp3 que tinha a playlist que eu fiz em fita k7 pras bodas de ouro de meus pais. Faz tempo isso, uns vinte anos. Nessa época, meu pai ja começando a esquecer das coisas. Ele não usava aliança desde antes de eu nascer. Numa briga com minha mãe, jogou o anel vaso sanitário a dentro. Quando foram as bodas, saímos pra comprar uma aliança nova para ele. Ele colocou e usou pra sempre até o dia em que ele morreu.
Então, no carro, quando tocou Nancy, nome da minha mãe, com aquela voz frágil do Galhardo perto dos cantores de sua geração, num momento veio a força das lembranças. Do tudo que eu ja fui. Do tudo que eu sou. Veio como uma onda tão poderosa de sentimento, uma grande onda de calor que, eu pensei, Graças a deus que nossa mente possui mecanismos para nos proteger desta saudade holográfica 360 graus que, se continuasse por mais tempo em nossos corações, tornaria a vida impossível de continuar só com a dor intensa da aus6encia de tudo que se foi e somente uma dobra no espaço-tempo poderia trazer de novo pra nós. Foi aí que eu tomei coragem de dizer para mim que não gosto mais do natal.
Minha mãe era o agente facilitador da aglutinagem familiar. Em volta dela e do meu pai, e depois em volta dela só, a familia gravitava como planetas, satelites, discos voadores, meteoros, supermen e raios cósmicos. Era ela que cuidava de atenuar os conflitos e comunicar aos navegantes que não era assim que se navegava, no caso de trajetórias erradas.
Hoje, depois de levar os filhos para a chácara onde a familia vai se reunir este ano, na volta, pela estrada, eu senti o cheiro dos ciprestes. E, de novo, o nariz me trouxe o passado da infância dos presépios, de ir com meu pai pegar os galhos, dos laguinhos feitos com espelho e serragem para colocar os patinhos de louça. Eu não gosto mais do natal mas ele ainda insiste em gostar de mim.
No meu sonho com o bundão, fiquei desconfortável pq o monte de bosta que ele me falou, procedia em sua maioria. Faz um ano e eu ainda to lá na escola, nos sonhos. Eu sei que não to mais lá, mas eu to lá. Sou uma pessoa despreparada para vida adulta, já disse isso. O bundão vive e é a vida adulta, no mau sentido. O bundao tem razão quando diz que eu tenho que partir, sair desta de ficar feito alma que não sabe que morreu. O natal agora, para mim, é um saco. Os planetas e corpos celestes criam suas próprias trajetórias e órbitas, formando um caos-padrão novo e mais complexo. A mãe Terra se foi, o pai Sol se foi.
E talvez, quem sabe, um dia. Por uma alameda do zoológico ela também chegará. E entrará sorridente, assim como está na foto sobre a mesa. E a partir disso a família se transforme. E o pai seja pelo menos o Universo. E a mãe seja no mínimo a Terra.
Hora de deixar as coisas irem para o passado. Hora de lembrar e esquecer ao mesmo tempo.

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