Medinhos Paralisantes

Hoje de manhã, a ida ao supermercado foi para testar a receita da Suraya com tomatinho cereja, manjericão e azeite, feita no microondas, que eu resolvi fazer e misturar com espagueti. Compro, além dos ingredientes pro macarrão, sucos concentrados de tamarindo e acerola e um desodorante roll on sem perfume da nívea. Vou pro carro. Enquanto guardo as coisas no porta malas, no estacionamento quase vazio, só mais dois carros, um deles dispara o alarme. Começa aquela musiquinha de teclado made in china que, quando os filhos ganha um de aniversário, deixamos cair sem querer, de uma altura razoável, pra ver se o tecladinho falece. Começa aquele tema do la gazza ladra que atingiu seu apogeu em boniteza na versão da Wendy Carlos pro laranja mecânica. Porém, como alarme de carro, o tema parece de caminhão de gás que tá no maior gás e descendo uma ladeira sem freios.
Eu penso, o cara vem ao supermercado, sete da manhã, na nove de julho, quase ninguém, e ele liga o alarme pra nao roubarem sua jóia, seu tesouro. Provavelmente deve ter seguro também, o que só faz a situação ficar mais rídicula ainda. Pq precisa ligar? Só a Regina Duarte pode responder. Porque ele tem medo, ele tem muito medo. E o medo não produz energia elétrica só no universo paralelo dos monstros s.a. O medo é uma força motriz aqui na nossa vida do aqui e agora. O medo paralisa. E toda a energia de ser algo se transforma em vontade de ter algo. Algo que nos livre de todo mal. É a energia potencial que move o comércio do medo com suas guaritas e muros altos e farpados.
Hoje de manhã quando cheguei ao super, fui descer do carro e tive a sensação que exagerei. Olhei para a minha bermuda xadrez de branco, azul claro, azul escuro no estilo toalha de cantina italiana pra daltônico, e vi que ela tentava desesperadamente conversar com meu crocs camuflado, Só que um falava dialeto de nápoles e o outro mandarim. Ficou difícil, tenho q reconhecer. Pelo menos a camiseta era azul marinho para dar uma acalmada nas coisas.
Antes do supermercado, antes de deixar o Joca na escola, logo que saímos de casa, eu vi um outdoor dizendo que o sinal de tv aberta analógico vai deixar de funcionar numa data aí que não me lembro mais. Eu li e me senti um marciano do meio da floresta, alguém que não vê mais tv, nem aberta e nem fechada.
O meu caso com a tv é o legítimo caso igual aquelas pessoas que vão dar testemunho sobre sua ex-vida pregressa de drogas e sexo e roque enrrol, lá na frente da igreja. Eu gostava muito de assistir tv, assistir trash, marcia goldsmith, luciano huck, ver novelas. Eu confiava na minha maturidade crítica para assistir e saber julgar as coisas erradas que eu via e poder distingui-las das certas. Porém, quis o destino que eu mudasse para um local, durante um ano, que não tinha sinal de tv aberta nem analógico e nem digital e, neste período de tempo, a família toda acostumou-se a ver filmes e séries baixadas e netflix e youtube. Nunca mais tivemos tv. Não foi por querer, mas foi muito maravilhoso o resultado. Primeiro você perde a inércia de ver aquilo que está passando e troca para ver aquilo que você quer ver. Se não quer ver nada, escuta uma música, conversa e faz outras coisas.
Mas foi o medo o que mais me deixou quando parei de ver tv e jornais de tv. O medo do futuro, o medo de mim, o medo do diferente. É o medo o que de melhor a tv sabe nos dar. Por isso, é emblemático que a frase “eu tenho medo” tenha sido dita pela namoradinha do brasil, virando ligeiramente a cabeça, para criar um clima. É o medo que vende seguros, câmeras de segurança, arame farpado, condomínio fechado, escola elitista e constrói shoppings. E é a tv que leva o medo para dentro da sua casa. Entrega em domicílio, quentinho e pronto pra usar.
Ontem, na gravação do podcast Crônicas Marcianas, o tema era apocalipse e conversamos muito sobre esta necessidade que o humano tem de sempre ter à vista, no horizonte, o seu próprio aniquilamento. Seja ele feito por marcianos, bomba atômica ou um enxame de zumbis. E hoje, quando vi o outdoor sobre o fim da tv, que já teve um fim pra mim, e ainda depois, quando eu e a Claudia ficamos conversando sobre a vida enquanto pegávamos um ar condicionado e escutávamos músicas, eu disse pra ela que ter parado de ver tv diminuiu muito meu medo basal. Que não dava para confiar só no seu taco de maturidade cognitiva, que não valia a pena aguentar o tranco da merda mídia, o conflito entre o racional e o medo instalado em doses homeopáticas, todos os dias, pela TV.
Nosso apocalipse não mais está no horizonte e nem é mais grandioso. Foda-se o imperador muleke da coreia do norte e sua ameaça nuclear. Hoje temos microapocalipses cotidianos vistos nas luzinhas leds da tela da tv. O horizonte tá ali na parede, dentro de casa, destilando medinhos paralizantes. Vivemos uma época de bosta, de muito medo, mas não viramos uma venezuela. Graças a Dels. Temer nos salvou de todo o mal, mas devemos ficar espertos pq o perigo é constante, o microapocalipse te espera no próximo segundo, seja enquanto venezuela, enquanto ataque cardíaco ou enquanto bandido q quer suas coisas.
Depois de quase três anos sem ver tv, quando tenho uma consulta e fico esperando na sala e tem tv aberta, eu me delicio, eu me lambuzo. Eu adoro as propagandas e, como estou afastado da linguagem, agora eu consigo perceber o quanto esta linguagem é forçada, não natural, feita para vender um produto. Antes, quando estava imerso, achava que era natural, que as pessoas falavam daquela maneira mesmo. Agora não, agora tudo é fake como se eu tivesse tomado a pílula vermelha do Morpheus.
Mas é ntão, querido Cleido, você está dizendo que não devemos assistir TV mesmo possuindo um senso crítico que consiga discernir entre o que é certo, o que é terrorismo e o que o errado? Sim, é exatamente isso que eu digo para vocês. Não em tom messiânico de quem viu a verdade. Apenas num tom sincero de quem entendeu que não é sobre a razão que se trata isso tudo. É sobre emoção. E emoções não são controláveis pela razão.
O famoso biólogo e pensador Humberto Maturana tem uma definicão biológica para emoções. Segundo ele, todos os seres vivos possuem cognição pq SABEM como permanecer vivos. De uma ameba a um chipanzé, todo ser vivo, vive uma vida de saber ser o que é e do que precisa para ser o que é. Árvores sabem ser árvores e vivem uma vida arvoreando. Cachorros cachorreiam. Quer dizer, pelo menos cachorreavam até uns tempos atrás, hoje tão quase humaneando.
Todo ser vivo conhece como estar vivo. Estar vivo é conhecer. Vida = Conhecimento. Pro Maturana, biologicamente, as emoções não são uma exclusividade humana e, na verdade, elas são disposições para a ação do organismo vivo que as vivênciam, elas determinam domínios, espaços possíveis para o organismo vivo atuar. Uma barata que procura comida na sua cozinha, durante a noite, está dentro de um domínio criado pela necessidade “emocional” de comer. Se você acender a luz da cozinha, este espaço de ação da sua querida barata vai mudar para um espaço de fuga do perigo onde a prioridade é se esconder. Neste novo domínio de ação,criado pelo medo, será impossível para a baratínea parar para comer um farelo caído no chão.
Emoções criam espaços e estes espaços determinam nossas possibilidades de ação. Assim, por trás de uma razão, existe sempre uma emoção que a determina e define.
Depois, só depois que eu parei de ver TV foi q eu percebi que o contato com a (realidade) proposta por ela, e pela mídia em geral, determinava em mim um domínio de ações possíveis gerado pela emoção do medo, dos medinhos cotidianos. E era só dentro deste domínio que eu podia ser capaz de viver e fazer coisas, mesmos as racionais. Por isso, amiguinhos e amiguinhas, não vale a pena. Não existe imunidade para aquilo que nem conseguimos admitir que nos afeta.
Nunca é através da ideologia q o poder nos controla. É através do medo. Medo de perder a vaga do filho pro sistema de cotas, medo de perder a diarista que arrumou um emprego melhor com plano de saúde no Carrefour, medo de perder meus bens para os bandidos. Medo de engordar, medo de não me quereres, medo de não conseguir, medo de errar, medo do mesmo.
Hoje de manhã quando acordei, olhei a vida e me espantei. Eu tenho mais de vinte anos. E o sangue jorra pelos furos, pelas veias de um jornal…
Na hora do almoço, o macarrão ficou muito bom com os tomatinhos cereja de microondas. Coloquei uma colher de sopa de pesto e fiz um suco estilo kefir, aproveitando o resto que estava na jarra, de uva e acrescentando tamarindo abacaxi e folhinhas de hortelã. O domínio em que posso me mover nesta hora, é um espaço que cheira a manjericão e eu visto a bermuda de cantina italiana daltônica. Neste domínio, a emoção que me move é o amor de estar junto, comendo, brigando e falando abobrinhas. Neste domínio, não existem os medinhos paralisantes. O microapocalipse não alfineta a base do meu cérebro a todo instante. Vivemos o viver da vida com menos eu tenho medo. O que o futuro nos reserva, dificil saber. Mas o presente se tornou mais leve, dentro do possível, já que meus receios e insegurancas agora são (quase) todos só meus. E não tenho mais o medo tá logo ali, dependurado como se fosse um quadro, na parede da minha sala. Experimente.

Eu podia ralar queijo nos meus braços


Música é tudo. Já disse isso e torno a dizê-lo. Música e imagem é o tudo mais que tudo ainda. O resto não me interessa. Jamais leria um textão desses que eu escrevo se não fosse eu que tivesse escrito. Ou seja, leio o meu pq é impossível escrever e nao ler ao mesmo tempo. Jamais iria numa exposição de arte que não fosse a minha. Tenho muita preguiça de artes visuais. Minto, exposições com salgadinhos na abertura me atraem. Não necessariamente temos que gostar do que os outros fazem no mesmo campo que q nós fazemos. Mesmo pq, eu geralmente façoescrevopinto pq preciso e não pq gosto.
Gosto de escutar músicas. Gosto muito. Gosto de prestar atençao nas músicas. Geralmente, letras não me interessam muito, gosto mais do sons e da voz palavras sons. Mensagens? Só em caso de extrema necessidade.
Hoje fui de novo ao parque do nãopode, daqui a pouco fico um gato se continuar neste ritmo. Hoje fui disposto a dar duas voltas na pista de 1 km. Esqueci meu boné lawrence, raios, mil vezes raios. Mas minha música estava lá.
Primeiro, toca uma da FKA Twigs que, escutando no fone, parece q tem tres músicas nadaver juntas. Uma batida programada com dislexia, uns sonidos electronicos completamente sem noção e uma textura de cordas sintéticas noutro departamento. Além, óbvio, dela cantando por cima disso tudo.
Minha meta são duas voltas na pista. Na parte que tem sol, sem boné, eu tenho desânimo mas continuo mesmo assim.
Depois do parque, fui levar o Nico na aula com o Paulo, pretendendo passar no pão de açúcar para comprar o limão siciliano, de onde colherei as raspinhas pro arroz doce. Também vou testar a ofertas geradas pelo aplicativo, que eu selecionei.
Tenho que confessar, não suporto o pao de açucar da fiusa. Tem muuuuuuita gente nova de bem. Não é como o da independência que tem só old school. Neste tem a ralé da elite, aquelas mocinhas que se chover morrem afogadas de tanto nariz empinado. Fora os zomi dei um tempo na bolsa e vim comprar uma agua para me hidratar.
Mesmo assim, no meio deste deserto de almas, encontro um oásis marido da minha professora q se foi. Eu não sei o q falar, meio q dou um abraço nele. Ele me diz que gostou do meu texto e que foi muito bom lê-lo. Eu acho q falo alguma coisa, mas não sei ao certo. O pão de açucar ganha alma nesse encontro. As boias do mar estão todas conversando dentro da água, fazendo conexões, se abraçando. Ele tem uma cara calma de quem acabou de passar por um furacão que levou tudo, mas deixou as memórias, as lembranças, as polaroids emocionais que formam no nosso existir juntos, mesmo que agora este existir seja sozinho. Eu adorei este encontro. Rumo em busca do suco de uva integral que está na oferta ativada do meu aplicativo.
Me sinto muito moderno caçando ofertas pré ativadas pelo celular. Vejo outras pessoas andando pelo super com o celular na mão, fazendo o mesmo. Meu celular fica sem serviço dentro do supermercado. Pergunto pro supervisor, como eu faço? Ele diz, Tem que ir lá fora! Me recuso, nao compro, mas também nao vou la fora pegar sinal de celular. O futuro tem um preço. Se eu não consigo ativar este preço, não é futuro. Depois descubro que já tinha ativado as ofertas em casa, então era só dar meu cpf no caixa.
Entro na fila do caixa. Senhoras finas na minha frente têm muita pressa e o caixa, óbvio, emperra. Reclamam que o atendimento dos caixas piorou muito e que elas não vem mais tanto assim no supermercado por conta disso. Me dá um dó delas. Penso em sugerir o savegnago da nove, mas tenho medo do olhar de laser e botox que poderá me derreter. A fila não anda. A moça resolveu pagar com dinheiro mas a caixa nao tinha troco e aquilo q deveria facilitar, só complicou. A cliente fica irritada. Ela usa tons pastéis e um colarzão colorido vitrificado para dar uma quebrada naquele nude geral pasmaceira fina de gente que tem pressa. Eu levanto meu queixo, congelo um sorriso dinâmico nos lábios de quem está tranquilo, nao tem pressa e é superior a todos que estão a minha volta. Pago e minha conta e vou embora.
No meio do caminho de volta, começo a achar q 112 reais ficou muito cara a minha conta. Estaciono o carro e vou conferir a notinha. Não saiu os descontos das três caixas dolce gusto que eu comprei. Eram para sair 16,45 cada e saiu 23,90. Sou tomado pelo espírito das mulheres finas nudes de rabo de cavalo e bolsinha de alça curta segurada no ângulo estilo raiz quadrada formado pela dobra do braço e antebraço. Ameaço gritar em pensamento, algo do tipo, AQUELE ATENDIMENTO DAQUELE SUPERMERCADO É UMA BOSTA, mas me lembro que pode ser que eu não tenha ativado esta oferta antes e por isso que nao saiu com desconto. Por conta disso, resolvo continuar homem de meia idade descolado, humanista, sensível, cronista do cotidiano e esquerdista ao invés de porco coxinha homem de bem mal servido por lacaios. Volto lá pra resolver meu problema. Pulemos esta parte. Tudo fica resolvido e eu saio de lá com as dolce gusto por 16,45.
No meio da tarde tenho meu pilates no prédio anexado ao iguatemi. Sempre fico comovido com aquela fila de gente na polícia federal. Pessoas em pé, pessoas no café tomando um machiatto. Pessoas sendo humilhadas só pq querem renovar o passaporte a tempo de ir pra disney na semana do saco cheio. Para ir pro pilates, tenho que virar a direita bem em frente da pf. No chão, uma moça de legging furta cor espera por sua vez, olhando no celular. Deve fazer três dias q ela está ali pq está sentada no chão, encostada na parede e com as pernas esticadas tomando 60% da possibilidade de passagem livre. Não tenho dúvidas, passo por cima dela, pulando as pernocas esticadas. Uma vez professor construtivista, sempre professor construtivista. Não pesco suas pernas, eu ensino ela a pescar. Ao passar por cima delas, mando a mensagem, comigo deu tudo certo, mas pode ter alguém mais pesado e desastrado do que eu no futuro, fica esperta! Espero andar um pouco e sutilmente olho pra trás. A mocinha continua sentada, mas as pernas estão recolhidas e flexionadas junto ao corpo. Júbilo em ser professor full time.
Marina, minha professora de pilates, parece que se sente estimulada com a minha choramingação de que já tinha andado dois quilometros no parque na parte da manhã e castiga no jump, na motoca e acaba com o que sobrou de mim na manhã.
Chego em casa, ponho o pé no lar e me informam que Sofia já terminou a prova e devo ir buscá-la. Boralá pra escola do zé gotinha pegar filha.
Fim de tarde, sol vermelho de secura e poeira no ar. É lindo, mas dá rinite. Faço o arroz doce da semana, ralo o limão siciliano que fui comprar no pão de açúcar. Logo depois que a bola vermelha vai dormir, rumamos em direção a las forasteras no food park fora de moda e que, por isso, agora está habitável e sentável. Degluto o meu maravilhoso cheeseburguer. Lembro do olho do boi. Maldita Eliane Brum. Nunca mais comi carne sem lembrar de onde ela veio, sem lembrar do olho do boi, atrás do hamburger. Adoro o gosto da carne, mas não me orgulho mais disso. Agora, eu pago o preço dela, a carne, olhando pro olho que me olha. Se vou parar um dia, não sei. Porém, o simples fato de não mais comer esta delícia sem contexto, sem saber de onde veio, já freia uns porcento da minha vontade. Eu gosto disso. Não é um sofrimento ruim, é um sofrimento necessário.
Olho pro lugar cheio de luzes amareladas, mocinhas, mocinhos, casais, famílias, crianças com espada do darth e penso que minha mãe, que adorava um fervo deste tipo, iria gostar deste lugar. Falo pra Claudia e também digo que ela só não iria gostar das desconfortáveis cadeiras. A Claudia responde, Olha ali, mais pra lá tem umas legais! E eu digo, A gente podia trazer aquela almofada de cadeira de casa para ela sentar. Nós nos olhamos todos e damos um sorrisinho saudoso que diz, Como se isso fosse o único obstáculo a ser superado para ela vir aqui conosco. Rimos da felicidade de tê-la tão presente que parece que ela só faltou hoje.
Na hora que bateu um desânimo no calor do parque da manhã, sol na careca sem protetor e tudo mais, tocou kraftwerk no phone. Metal on metal, aquele movimento do trans europe express que simula um trem mudando de trilhos, os barulhos todos que fazem, os freios, as ferragens, o telégrafo. Fones de ouvido são mágicos para quem gosta de escutar tudo numa música, as texturas, as divisoes do sons entre as caixas, os microbarulhinhos ocultos. É fodástico como neste trecho da música, os kraft fazem tanto com tão pouco. Como as batidas minimais se completam em canais diferentes fazendo o som atravessar seu cérebro através das orelhas. Tanto com tão pouco. E tá tudo lá dos trens, de uma viagem de trem. Andei muito de trem na minha infância e parte da adolescência. Eu reconheço os sons, eu escuto e sinto tudo aquilo em forma de lembranças sonoras. Lembro de muito mais, da geléia de mocotó e do guaraná caçulinha que o moço passava vendendo e que eu morria de vontade de comer numa época que morrer de vontade de comer algo não significava muito mais do que simplesmente morrer de vontade de comer alguma coisa.
Tudo está ali junto com as batidas eletroacústicas e os sintetizadores analógicos da banda nesta época. Tudo é um caldo de memórias e sons. Cada um mudando cada um, ressignificando e sendo ressignificado ao mesmo tempo. Eu me sinto no meio de um momento grandioso e orgástico. Um arrepio sobe do cóccix até o pescoço. O arrepio é tão intenso que eu posso ralar queijo nos meus braços.

 

 

A Geografia dos Sonhos

Hoje eu acordei, levei o Joca, deixei uns desenhos na escola, um arroz doce pro Varte e sete e meia já estava aqui em casa de novo. Vou sair pra caminhar, mas antes preciso levantar as cadeiras da sala, dos quartos e ligar a roomba para quando eu chegar estar tudo aspirado para que a braava passe o paninho úmido dela na sequencia. Dá uma preguicinha de fazer tudo isso. Não que seja algo trabalhoso, é que sair para caminhar é frágil o suficiente para que eu desista se algo aparecer no meio da minha vontade latejante. Só saio pq escuto músicas. Sem música não vivo. Sem música não caminho, não ando, não mato, não morro.
Como da última vez eu me fudix pq nao levei boné, hoje fui com o meu lawrence legiao estrangeira das arábias comprado na renner faz uns dez anos. É daqueles que tem uma aba que protege o pescoço dos raios ultraviolentos. Traje completo, bermuda de caminhar, camiseta fora temer em várias línguas, crocs básico com padronagem de camuflagem, meu boné lawrence e óculos de sol oakley mano rolezinho de shopping terror da classe média. Deixei a barba solta Confúcio style pra dar uma estranheza no visual estranho. E lá fui eu.
Minhas orelhas receberam elza soares cantando levanta sacode a poeira e dá volta por cima q tem um rapper que canta com ela em francês. Já animei. Meus passos animaram. Tá certo que era descida. Só eu q acho q no maravilhoso A Mulher do fim do mundo, parece q a Elza não está muito lá junto com os músicos? Não sei explicar, vão me crucificar por isto, eu sinto q ela não tá lá, que não sente a música. Ou melhor, que a música passa por ela e ela não transforma a música como fez em todos os seus outros discos.
Eu chego no parque do não pode. Adoro a fauna que anda corre por lá. Tem umas mocinhas que ornam tudo. Tem camisetas customizadas. Tem gnt que passa PERFUME e vai correr. Graças aos céus, o desgraçado que me deu o cartão obesidade/terceira idade não tava lá. Meu boné faz sucesso comigo mesmo, o sol não arde nem na careca e nem no pescoço.
Lembro que sonhei com aquela parte da cidade antes da rodoviária, aquela rua antes do mercadão. Nos meus sonhos existe uma geografia particular deles. Sempre sonho com lugares específicos de Ribeirão e eles são diferentes da vida real. Mas possuem sempre um mesmo estilo para servir de cenário para meus sonhos. Uma arquitetura específica, um espaço urbano onírico.
Sonhei que andava pelas lojas de perto da rodoviária, sempre é noite ou madrugada. Sonho muito também com a Francisco Junqueira e com o rio dela. Nos meus sonhos, as vezes passam barcos nele, outra vezes é muito dificil de atravessá-lo pq as pontes sao estreitas demais ou estão para cair. Quando eu era pequeno e morava no campos elíseos, atravessar o rio era estar no centro, era ser grande e adulto e responsável pelos seus atos. Volta e meia eu sonho com esta travessia. Sonho com as lojas americanas, o cine centenario e as ruas da proximidade, o terminal de onibus que ali existia. Sempre é noite, muitas vezes tem muitas luzes de enfeite nas ruas, cafés, sorveterias como se aqui fosse Búzios, ou melhor, o que eu imagino que seja Búzios pq nunca fui lá. Sonho muito com a vila seixas praça sete perto do hc e rua joão bim que é tudo um lugar só, cheio de armazens e lojas perdidas no tempo. Lojas que parecem mercearias ou que vendem arte comida e artesanatos interessantes. Sempre é noite na minha geografia dos sonhos, mas não necessariamente é escuro. Quase sempre é cheio de luzes e sons e pessoas como num daqueles quadros impressionistas de cenas noturnas da cidade.
Resolvi voltar da caminhada um pouco antes, pois, última vez que, esbaforido, ainda tive que andar mais quatro quarteirões de subida até minha casa. Toca uma musica da Elza do disco da mulher do fim do mundo. Eu escuto e repenso o que tinha pensado no começo desta crônica. Acho que estava louco naquele momento que pensei aquilo.
Mudar e repensar é vital para minha vida. Pra mim, isso é movimento. Quando você pensafala sempre a mesma coisa e do mesmo jeito, esta mesma coisa já ficou lá atrás. E você veio, mas também ficou lá. O mundo muda de pouco em pouco, muito pouco. De repente vem uma onda destes q ficaram lá pra trás e derruba tudo. É o papel deles tentar estabilizar o caos. Eu sou o caos ou pelo menos queria ser. Não é em conteúdo que nosso mundo piora, é em possibilidade de expressão do que existe de mais egoísta e baixo em nós, sem consequências. O cantor ofende a artista pq ela defende a liberdade de expressão. Então ele pega uma foto dela e desenha um pinto em cima da foto e escreve puta. É a forma dele mostrar que se na arte pode tudo, então ele pode fazer isso com a foto dela. Tem dois erros nesse caso. O primeiro deles é que apesar de que realmente se pode fazer (quase) tudo em arte, isso que ele fez não é arte, nao pq ficou ruim, mas pq a intenção dele não era fazer arte e sim agredir alguém. O segundo deles é q o pinto dele que eu vi na G magazine é muito menor que o que ele desenhou na ofensa. Propaganda enganosa.
Mas pq ele fez isso e postou no twiter sem ao menos passar pela cabeça dele a vergonha alheia que isso iria gerar? Pq pessoas vem até meus posts falar umas asneiras e serem esculachadas pelos uzamigo meus e mesmo assim vem e falam asneiras? A resposta é o respaldo social. Vivemos uma época em que toda a merda escapou da caixa de pandora e tudo pode. Nem a esperança que, teoricamente teria ficado presa na caixa, aguentou e tb foi embora. O mundo mudou, mas as pessoas não mudaram. O mundo quer isso das pessoas, o mundo dá para elas a possibilidade delas mostrarem o seu pior em sua plenitude de baixeza e egoísmo. O mundo sabe que se não der isso pra elas, se nao der a possibilidade de viverem sua própria sodoma e gomorra conceitual de condominio fechado, em breve não mais as terá. Então dancem pessoas lindas, dancem em nome do Senhor. Dancem como se não houvesse amanhã. Pq o seu júbilo hoje é de Deus mas, com certeza, quem patrocina os anúncios do intervalo é o Demônio.
Júbilo eu sinto na hora que volto pra casa ao tocar let’s dance nas minhas orelhas. Confesso, comecei a gostar realmente do David Bowie no let’s dance, na fase que ele fez sucesso de público e caiu na dança ancorado pelo Nile Rodgers. Este foi o álbum dele que escutei e dancei até a última gota. Depois, aprendi a gostar dos outros. E foi justo essa que começou a tocar na hora da volta pro lar.
A iluminação da hora do dia, o céu azul, os ipês pompons rosa e rosa claro, alternados, deixando um rastro de neve pétalas no chão de grama meio seca de estiagem. A batida da bateria, o baixo pulsante, as árvores em flor e eu olhando para elas entre luzes impressionistas. A geografia impressionista urbana de luzes dos meus sonhos, em uma versão matinal, ao vivo e a cores. David pede para eu colocar meus sapatos vermelhos e cair no blues. Pede para eu me mexer, dançar, enquanto as cores iluminam minha face. Eu toco air bass, eu toco air drums, eu olho pros ipês. Eu tô de crocs camuflado e isso deve ser ótimo pra dançar o blues.
Meu êxtase é diferente do júbilo do iguais. Meu êxtase é Santa Tereza de Bernini sendo flechada pela seta flamejante de som let’s dance e luz matinal.
Invadido por uma extrema felicidade eu chego em casa. Tinha motivos para estar triste, mas estou feliz. Tenho motivos para estar feliz, mas poderia estar triste. Tudo vive, ao mesmo tempo, dentro e fora de mim. Não sei como comandar isso, como entender estas compreensões do todo que vêm de supetão, mistura de música, endorfina e luz. O mundo da noite nos sonhos. O mundo do dia no dia acordado. Por uma fração de tempo que eu não sei qual é, tudo se junta num êxtase. “…e o sol então nos encontrará, pela madrugada. De mãos dadas como num conto de fadas. Cor de jade e de marfim, nos invade, amor sem fim. Felicidade é uma coisa assim!”

Minha Vida com o Palocci


No meio do feriadão eu acordo pensando no meu amigo palocci. Pensando que ele foi no meu casamento, que ele foi casado com duas grandes amigas minhas. Que eu, saindo duma daquelas festas da usp, levei todo mundo, cada um pra sua casa, no carro dele pq tava todo mundo bêbado, menos eu que não bebia e não bebo até hoje. Que a vida dá voltas e que, por conta deste passado, não consigo odiá-lo, mas sim apenas ficar muito triste, triste como quando um amigo faz uma cagada e te fode e fode com a amizade, mas não fez por mal. Não existe ódio pq, para mim, ele é uma pessoa e não uma figura pública. Só decepção e tristeza.
A tristeza fica por conta do quanto queremos e do que fazemos pra ter o que queremos. Fica por conta do tanto que podemos passar por cima dos outros para atingir nossa meta. Minha cabeça se quebra em duas pessoas q se sobrepoem, uma real da juventude e outra pública q deda para continuar a viver no mundo de dedadas e imagens. Um mundo em que os inimigos se encontram e se beijam e se convidam pra tomar um drinque juntos.
Não dou conta desse mundo. E, ao mesmo tempo, não foi o mundo do palocci, do lula, do fhc e do aécio que caiu em mim e eu não dei conta. Tive amigos mais proximos que optaram pelo dinheiro e pelo poder e não tiveram nem a finesse de me olhar na cara. Provavelmente hoje, ironicamente, estejam criticando a covardia do palocci pessoa pública enquanto enfiam a propria covardia no final do trato digestório.
Hoje eu acordei no meio da independência e pensei que vamos continuar voltando. Até chegar o momento em que pensar que a terra é plana nao vais ser mais um meme. Vai ser real. Avançaremos no retrocesso até o necessário. Uma onda de resignação assolou meu ser. Lembrei do Tao te King, Avançar é retroceder, retroceder é avançar. Penso nesse momento como a hora exata em que a mão puxa a flecha no arco para que ela ganhe energia potencial para ser disparada. Retroceder é avançar. Uma onda sobre a inutilidade das redes sociais como promotoras da mudança abateu-se sobre mim. Não assino petições, não compartilho correntes, mesmo que concorde com elas. Não quero mais este torpor. A religião é o ópio do povo. Mas as redes sociais são a cocaína da parcela esclarecida da população em que me incluo. Uma cocaína que entorpece com a mentira da lucidez e da falsa sensação de estar batalhando por um mundo melhor sem sair de casa.
Hoje acordei pensando no passado como uma roupa velha que não nos serve mais e que eu ainda insisto em tentar vestir. O palocci da faculdade nao me serve mais, eu engordei. Mas, lá no passado, tanto eu como ele nos servimos.
O passado me chama e seduz. Ao passado tudo é permitido e perfeito justamente pq ele já passou. É nele que mora nossas referências e é lá que tudo parece melhor quando o aqui/agora parece horrível. Artimanhas de defesa de nossa psiquê.
O momento realmente não é bom. Mas meu momento é. Tenho felicidade em mim, apesar de tudo. Tenho felicidade em ter certeza que não pertenço mais aos lugares que me deixaram neste ano que passou. A crise está aí mas eu nao a sinto. Não por ser dissociado, mas por ter esta felicidade é azul de ser feliz e (quase) livre das pessoas nefastas.
Acho que até mesmo o passado recente é uma roupa que não me serve mais. Escrevo um post falando sobre a necessidade do professor encantar o aluno como uma falácia pedagógica, mas como uma verdade do mercado educacional atual. Um ex colega da escola em que fui demitido toma as dores do mercado e vem no meu post defender a loja e o dono da loja. Fico achando que ele não entendeu nada. Tiro uns sarros dele pq não vale a pena argumentar mais forte pq o argumento vai ter que ir com bula e tenho preguicinha. Ele fica nervoso rápido, penso eu, e voa na minha goela dizendo que eu penso assim pq fui demitido. Fico com vergonha por ele. Independente de ser verdade ou não, fico com muito vergonha de alguém precisa usar um canhão de raio laser potencia máxima pra matar, supostamente, um pernilongo (eu). Fico com muita vergonha. Se eu olho pro passado, este colega tb não me serve mais. Eu realmente engordei. Mesmo assim, é no passado que eu busco ainda algumas referências e saudades. Será por isso que tenho sonhado tanto com meus pais?
Hoje de manhã, comecei a xingar o desgraçado do microondas pq ele simplesmente não parava de ligar sozinho e eu queria esquentar meu leite. Xinguei xingamento microondofóbicos, microonxistas, xinguei como se não houvesse amanhã. Este microondas, a claudia ganhou do meu pai quando ainda morava sozinha. Foi o primeiro eletrodoméstico não necessidade básica dela, na época da pós. Volta e meia ele liga sozinho, quer dizer, faz barulho que vai ligar mas nao liga. Dai temos que ficar apertando o botao de start dele até uma hora que ele resolva funcionar. Por isso gritei e xinguei o coitado.
A Claudia disse alto lá da sala, Tá na hora de comprar um novo!! No que eu retruquei, Nossa, coitado, ele tá velhinho, vai se desfazer dele assim? E ela, Cleido, vc é tonto? Lembra que quando ameaçamos ele, falando que vamos trocá-lo, ele volta a funcionar? Então, tô só fazendo terrorismo-eletrodoméstico.
O passado pai de microondas me acalma já que o presente tem outro pesar, por enquanto. Tiro o peso do presente, pesando o amor e saudades do que já foi. Tenho afeto pelo microondas velhinho. Ele máquina pensa menos em dinheiro e poder que muita gente que achava que conhecia, mas conheci de verdade mesmo no final do ano passado.
Tudo agora é roupa velha que não me serve mais. Menos a minha família e meus amigos verdadeiros que são puro algodão com elastano, são capazes de acomodar meu reajustes corporais. Um dia não vou ter mais raiva e nem mágoa de ninguém que me fudeu. Mas não vai ser hoje.

Reflexões sobre a Velhice, a Vida dos Patos e a Física no Cotidiano


Não sei se é por conta da minha glicose que deu um pouco alta, mas acordei dramático existencial, hoje. Na hora que sai de casa pra levar o Joca, o tapete tava todo desarrumado porque JJJ, nosso gato selvagem de estimação, dormiu lá a noite. Lá fora, embaixo da árvore, escuto um farfalhar de asas e folhas e penso que janjão garfou uma rolinha. Olho pra cima e é uma rolinha pomba gigante. Que que é isso? Parece uma rolinha refrigerante de 2 litros de tão gorda. Penso q nosso filho pet selvagem apreciaria muito aquele chester voador.
Depois, quando já deixei o Joca na escola e saio do supermercado, nunca consigo parar perto o suficiente do leitor optico de codigo de barras para mostrar o comprovante de estacionamento e depois conseguir jogá-lo no lixo que tem ao lado. Mas a física sempre me salva já que me lembro da resistência oferecida pelo ar ser maior em uma superficie plana do que numa area de contato esférica. Com orgulho de meu conhecimento, amasso o comprovante, formando uma bolinha, e arremesso direto no lixinho meio longe. Não consigo não fazer uma cara de soberba que só quem estudou na USP sabe fazer.
Volto pra casa e decido que hoje será meu primeiro dia de caminhada. Pego o iPod da claudia pq meu celular nao cabe no bolso do short de caminhada que nao tem bolso e vou pro parque do não pode. É o das artes, mas não pode nada lá. Não pode animais, não pode som, não pode bicicletas, não pode patins, não pode comer, não pode dar comida pros animais. Começo a caminhar e já descubro que o trajeto tem 1000m. Dou uma desanimada naquela minha idéia inicial de dar 10 voltas na pista. Percebo um movimento na água, é um pato que emerge com um peixe na boca. Igual no discovery channel, o peixe lá se estrebuchando no bico dele, cai na agua e o pato mergulha atrás dele, passa uns 12 segundos e volta o pato triunfante com o peixe na boca. Coitado dos peixes, ninguém liga pra eles enquanto carne. Até vegetarianos comem peixe se bobear. Passam patinhos em fileira pela grama, estes são preto e branco. Continuo a andar e tá teno uma reunião de patos noutra parte do gramado, bem embaixo de uma árvore, na sombra dela. Acho tão bontinho uns que balançam o rabinho de penas. Continuo minha caminhada, tem uma parte que está bem no sol, e eu nao levei boné nem passei protetor. Mesmo as sete e quarenta da manhã, o sol é foda em rebs.
Vejo umas garçonas marrons. Que é aquilo? Ema? Tem também várias casinhas de cachorro destas de loja de pets espalhadas pelo gramado pros patos, eu acho. Sobre um certo ângulo da visão de quem caminha, elas perdem a tridimensionalidade e só vemos o formato arredondado como se fossem lápides cinzas no meio da paisagem. Ok, podem ser endorfinas que apareceram pq já to meio cansado. Decido que não vou conseguir duas voltas inteiras.
Neste momento, passa por mim um moço fitness, fisioterapeuta, ele tá correndo na pista, e me dá um cartão de personal trainer. Eu penso, Nossa, pq ele deu só para mim o cartão e continuo a andar. O iPod da Claudia começa a tocar ’tis is a pity she was a whore do último disco do David Bowie, mesmo passada toda a comoção pela sua morte, ainda é possível sentir a genialidade de seu black star nas minhas orelhas.
Resolvo voltar pra casa, to bem cansado. Só não contava com os três quarteirões de subida até ela pra quem já tá no toco. Vou andando e esmorecendo, começo a encanar que to encanando que to passando mal e vou desmaiar. Mas aí eu desencano que to encanando que to encanando. E se eu estiver desmaiando mesmo? Daí eu encano que se eu desencanar eu posso desmaiar mesmo pq estava desencanando de algo que deveria ter encanado. Por via das dúvidas, paro e sento na muretinha de um prédio comercial na esperança que passe uma alma caridosa conhecida e me de uma carona de dois quarteirões, agora. Chego a conclusão que era encanação mesmo.
Descanso e chego em casa. Preciso de uma água. Como uma banana e tomo meio copo de agua de coco. Vou pedir pra vcs uma coisa. Se eu entrar nesta vibe de ficar falando de calorias e de quanto que caminhei no parque, se eu virar fitness, se eu contar quantas calorias tem uma espiga de milho, vcs já sabem o que fazer com o sabugo, ok?
Resolvo ver o nome do fisioterapeuta que me deu o cartão no parque. Olho pro cartão e, na parte de cima, em letras maiores, está escrito, especialista em Obesidade e Terceira Idade. Começo a rir pra não chorar. Minha dramaticidade pré-diabética se exacerba. Velhice e obesidade. Tomanocú!
Aprendi com minha cirurgia que morrer não é uma ópera barroca com um coral de 500 vozes anunciando o fim. Morrer está mais pra fechar os olhos só para dar uma descansadinha. Está mais pra um joão gilberto cantando, é só isso meu baião e não tem mais nada não, dim dom dim dom.
Hoje, quando me vi na seção de hortifrutos do supermercado às sete da manhã, escolhendo tomates, eu percebi que a velhice tb chega de manso, todo dia um pouco e não necessariamente num alzheimer de babar papinha no leito do asilo. Se estas duas percepções do processo da vida foram boas, não posso dizer com certeza. Mas posso dizer que dá um certo alívio saber que morrer é só um piscar de olhos do qual não se volta.

O Estranho Caso do Celular no Universo Tangencial


Hoje cancelei meu cartão itaucard platinum que me fazia ser alguém especial e com um limite de 35 mil reais para gastar, e não ter como pagar, em coisas que só o capitalismo nos proporciona. Cancelei, óbvio, pq tinha anuidade e todo ano ligo e choro e imploro e troco por pontos e eles, num momento de bondade semelhante aos faraós que concedem o perdão ao condenado e só deixam ele no calabouço por 100 anos ao invés de matar, te dão um desconto de 70%.
Hoje não, hoje eu liguei firme para cancelar. Falei pra moça, Olha, não é um joguinho pra conseguir desconto na anuidade, eu realmente quero cancelar o meu cartão. E ela aceitou de pronto.
Senti até um vazio, ja que fazia mais de 15 anos que tinha este cartão. Penso ainda que talvez nem consiga sobreviver ao mundo das compras sem ele. Apesar disso, e do nubank grátis metadona, estou calmo. O maior problema mesmo é deixar de pertencer a uma turma que tem um cartão que faz de você alguém melhor.
Ontem a noite o celular da Claudia se perdeu em um universo tangencial. A gente ligava pra ele aqui em casa e nao conseguiamos achá-lo. Depois de muito rastrear pelo som dele, chegamos até o lixo de recicláveis, tiramos tudo e nada de celular. Ele estava ali e nao estava ao mesmo tempo. Parecia que ele se comunicava através de um buraco de minhoca. Nico vai pra sala e diz, Quando estou aqui, parece que ele está aí. Quando vou aí, parece que ele está na sala. O mistério continuava. A Claudia desiste. Eu continuo tentando desvendar o enigma. Vou até o lixo da área de serviço. Abaixo e o som fica mais alto. Ele está dentro do lixo. Como foi parar lá, não sabemos. Tiramos tudo do lixo e ele não está. Todos desistem da busca. Um tempo depois, resolvo checar o whats no celular q estava no bolso da minha calça. Tiro ele do bolso e descubro que é o celular universo tangencial da claudia que eu peguei pensando que era o meu. Tenho um acesso de riso ao descobrir que era por isso que o som dele aumentava quando eu me abaixava e colocava minha orelha perto do lixo ( e tb do bolso da minha calça).
Hoje de manhã quando acordei, levei o Joca na escola, depositei uns dinheiros de arroz doce na minha conta pq as outras contas estão chegando nela. Fui tirar cheques pra claudia mas esqueci de um pequeno detalhe, pegar o cartão da conta dela. Daí foi impossível. Tentaremos de novo, amanhã.
Vejo ou não vejo os resultados dos exames de sangue online antes do feriadão? Vejo. K’rai, a glicose ta acima do bom. Vou fazer regime. Morrer do coração ainda vai, deve ser rápido. mas não vou suportar ir cortando dedinhos do pé e ficar cego por conta de açúcar. Goodbye blue sky, goodbye! No almoço, tomo uma taça de suco de uva integral com olhar blasé de meu mundo caiu. Como salada de alface, ameixas secas, damasco, gorgonzola e castanha de caju que a esposa fez. Tempero bem gourmet classe média com sal rosa comprado na liquidacao do sam’s e azeite aromatizado com alho negro de mumbuca. Tá, tá, eu como penne com carne em tirinhas mas não repito.
Lembro do meu cartão picadinho com tesoura e fico feliz. Free as a bird. Mais uma amarra do eu acho q preciso pq os outros tem que se vai para meu barco singrar o marzinho sem muito peso. Não sei o de vcs, mas o meu mundo precisa mudar. Existem muitos universos tangenciais tangenciando o meu viver, dando e vendendo coisas para mim que eu nem quero. Eles me chamam e chamam e eu nao sei onde estão. Não adianta fingir que não ouço pq onde eu vou ele vai comigo. O jeito é descobrir que ele tá lá mas também tá aqui. Que eu não preciso mais de um cartão de 35 mil reais de crédito para me sentir especial. Mas antes de tudo, é preciso admitir que eu me sinto especial por ter um cartão deste, para depois poder me livrar dele.

Sementes de Mostarda Salvam Minha Vida


Será que as coisas que a gnt pensa que as pessoas pensam, elas pensam mesmo?
Já estou em casa e ja levei o joca e ja passei na farmacia pra comprar band aid, e descobri que tem um a prova d’agua. Comprei o normal e o a prova dágua e o normal vou deixar pra claudia. Vou esconder os impermeáveis, vingança e mágoa pq ela usou todos os meus do darth vader.
Comprei band aid pra colocar no corte do meu dedo feito ontem a noite, antes de dormir. Cortei o dedo procurando Bpantol pra claudia passar na bolha que formou no pé por ela ter vindo a pé uns 2 km, ja que o alcool do átila acabou no meio do caminho da volta de ter ido levar o nicolau na aula de guitarra as oito da noite de ontem. Saímos pra resgatar o uno, passamos num posto, comprei alcool e um galão pra levar com direito a restituição do dinheiro se devolvesse o galão.
Deu tudo certo, foi bem rápido, era falta de comida mesmo o problema do átila. Ele tá com o medidor de tanque quebrado e eu calculo o combustível por sistemas empíricos ligados ao calendário gregoriano e a altura do sol nos solstícios. Eu uso este carro 98% do tempo, e o gás foi acabar justo nas mãos dela, no meio da noite e de ruas pouco iluminadas.
De qualquer maneira, as sementes de mostarda apertadas em pontos de raiva e ansiedade na orelha da claudia salvaram minha vida. Ela chegou em casa com os pés cansados mas calma e, segundo palavras textuais dela, nem em pensamento ela quis me matar e dar na minha cara. Ufa. Obrigado sementinhas.
Depois que passou tudo, eu consegui ver que estava meio desanimado e cansado e com sono pq tinha saído de manha, ontem pra dar aulas e fazer o exame de contra prova de que estava tudo bem com meu coração. Justamente fazer de novo, e no mesmo lugar, o exame em que o problema realmente apareceu, uma esteira com ecocardiograma.
Acordei no ontem antes do exame e já engoli um frontal. E na noite antes de dormir desta manhã de ontem em que acordei e tomei um frontal, minha irmã e meu cunhado de botucatu estavam aqui e fazia quase um ano q eles não vinham pra cá. Daí, minha irmã daqui juntou todos na casa dela e teve muitas coisas de comer e eu levei o meu melhor arroz doce do mundo. Lá, uma ninhada de filhos e primos dos filhos avançaram sobre a travessa cheia e dizimaram o coitado do arroz como um bando de gafanhotos next generation. Sim, pq esta geração de gafanhotos já é filha da geração que deu origem aa série q já dizimava os doces da minha mãe, vó deles.
Então, mesmo nesta noite antes da noite de ontem, eu já estava me sentindo meio assim, normal este exame, está tudo bem, mas tinha um certo traumatismo craniano psicológico de fazer o exame no mesmo lugar que deu errado a primeira vez. Por mais que racionalizemos, Skinner faz sua parte com louvor, sempre.
Por isso, então, quando no meio do meu lanche no intervalo das aulas, na escola, ontem de manhã, eu disse, Olha gnts, tenho que confessar uma coisa pra vcs, eu to meio medinho de fazer este exame, eu esperava uns É normal, fica deboa dos pessoal que estava por lá, e não um Ah, este é aquele exame que você faz esteira até desmaiar? Minha mãe fez e desmaiou.
Solidariedade não dói. Mas será que as coisas que a gente pensa que as pessoas pensam, elas pensam mesmo? Será que esta conexão entre o meu assunto e o assunto do outro que eu coloco tantos significados, existe mesmo fora de mim? Quando um aluno me perguntou se Leonardo pensou mesmo em colocar a cabeça de cristo no meio da janela entre o céu e a terra, fazendo convergir todas as linhas para o ponto de fuga localizado na cabeça dele, ele pensou mesmo nisso? Ou somos nós que pensamos que ele pensou?
Expliquei que mesmo que ele não tivesse pensado, ele pensou pq vivia um espírito de época, um zeitgeist, no caso o renascimento, que valorizava o humano colocando quase que colocando-o em pé de igualdade com o criador. Era uma época em que o ser humano começou a se achar o máximo, por isso, leonardo, mesmo que nao tenha sido consciente da parte dele, tudo que vemos e interpretamos nos quadros dele, foi feito dentro deste espírito de época e, portanto, ele pensou. E se não pensou, a época dele pensou por ele.
E nós? Agora, aqui, hoje. Será que os individuos possuem esta consciencia individual sobre o fluir do coletivo que vivemos no presente ou somos nós que conseguimos ver no outro individualidades que fazem parte do espírito de nossa época atual mas ele mesmo não vê?
Isso tudo parece uma viagem (e é), mas quero dizer que pretendo chegar em um destino com ela. Quero saber se o que achamos do outro diferente de nós, ele também acha sobre si mesmo, só que acha q é o certo a ser feito. Esta questão é muito importante em ser solucionada, porque a conversa, o diálogo, o dar voltas juntos só pode acontecer se estivermos no mesmo domínio de ações, mesmo que em pontos de pensamentos diferentes. Uma coisa é achar q ue o outro pensa da maneira q pensa e tb acha errado pensar desta maneira. Outra coisa é pensar que o outro pensa do jeito que pensa e acha certo pensar assim. Isso vai definir como poderemos conversar sobre tudo isso.
O humanismo que Leonardo começou, desembocou no individualismo que hoje nos faz nao ver nada que nao seja o nosso eu. É estar numa sala de espera e entrar uma pessoa, olhar para o aparelho de ar condicionado e falar, Não vou ficar aqui pq tem ar condicionado! E nem perceber que ele está desligado. É voce confessar que está cagando de medo de refazer um exame e alguém te dizer que tem gente que desmaia de tanto se esforçar.
O médico termina o eco de esforço e me diz, Está tudo muito bem. Perfeito. E ainda completa, É bom dar noticias boas! E eu digo, É bom dar e receber notícias boas. Leonardo, seu egocêntrico, nem tudo tá perdido. Solidariedade não dói. Mas, ver o outro como ele realmente é pode doer, ou não.

O Viajante sobre o Mar de Nuvens

Não sei se você sabe, mas eu tinha 15 aninhos e estava na primeira série do ensino médio quando ouvi falar de Carl Gustav Jung pela primeira vez na minha vida. Freud sempre foi pop e, mesmo sem saber direito, todo mundo sempre soube dele. Mas Jung na década de 1970? Só para os fortes. E não é a mim que refiro quando digo “só para os fortes”, mas sim para a pessoa que me contou sobre ele.
Era uma aula de literatura no Otoniel Mota, nós liamos Memórias Póstumas de Brás Cubas, ou seria Dom Casmurro? Bom, é no livro do Machado que tem um capítulo chamado o sotão ou coisa parecida, ah sim, a razão e a sandice, o google me disse. Nesta aula, a professora de cabelos loiros, platinados, amarrados cuidadosamente num coque no quase alto da cabeça que lhe dava uma aparência de diva clássica de filme do Hitchcock, explicou sobre o simbolismo do sotão como um lugar em que o personagem de machado guardava e vasculhava por suas lembranças. Disse mais, disse que um famoso psicólogo havia postulado que existiria, além do nosso individual, um inconsciente que pertencia a todos da espécie humana, que era comum a todos, um inconsciente coletivo. Já com a boca aberta e embasbacado de tanta viagem por mares nunca dantes navegados (por mim), ainda ouvi a imagem simbólica que ela fez para que pudessemos entender.
Ela disse, É como se fossemos bóias num mar, cada indivíduo é uma bóia, fora da água, somos individuos separados, mas na parte dentro da agua, estamos todos conectados e compartilhamos o mesmo mar inconsciente.
Há quarenta e três anos atrás eu formei esta imagem na minha cabeça e até hoje, se você me disser qualquer coisa que me lembre do inconsciente coletivo, eu vejo as boinhas, com uma parte do lado de fora e outra do lado de dentro da água, num esquema de corte igual vemos nas figuras que explicam quanto do iceberg está para fora da água.
Se ter tido esta professora brava, séria, que odiava fichinhas com as caracteristicas físicas e psicológicas das personagens que a gente copiava de algum lugar, esta professora que me ensinou que ser diferentão e barroco era o canal, desde que eu fosse diferentão e barroco, se ter tido alguém assim na minha vida não foi uma das coisas mais importantes que eu aprendi na escola, para fora dela, eu não sei o que são coisas importantes na vida, e no viver a vida.
Ontem ela se foi. E o primeiro que disser que o céu está em festa eu vou dar na cara! Foda-se o céu e sua festa. Eu aqui estou triste. Muito triste.
 
para Bete Kefalás Troncon

Eu, Frank Underwood e o Arroz Doce de Roupas


Esta noite tive dois sonhos estranhos. Tenho muito sonhos estranhos, mas quando eles são possivelmente estranhos, eu acho mais estranho.
No primeiro deles eu fazia arroz doce de abóbora dentro da maquina de lavar roupas e, inacreditavelmente, porém possível, usava também roupas para fazer o doce. Mesmo no sonho eu achei meio esquisito. Não botava muita fé q iria dar certo. A porta frontal da lavadora estava aberta pq eu tinha que empurrar as roupas pra dentro com uma colher de pau para poder fechá-la. Enquanto olhava e pensava que as roupas precisariam ser cozidas na agua quente da máquina por um bom tempo até ficarem macias e comestíveis.
No segundo sonho eu encontrei com o presidente. Não era o Temer, nem sei se era o Brasil. Tudo era aquela mistura sintética que os sonhos tem de juntar em uma só pessoa ou lugar, varias pessoas ou lugares. O presidente encontrou comigo por acaso na rua, ele estava de terno e era uma mistura de jucelino com frank underwood. Mas não era nenhum dos dois. Pelo jeito eu conhecia ele de antes. Disse para mim que precisava que eu ficasse no lugar dele, que não estava mais a fim. Incrivelmente, até para sonhos, eu aceitei apesar do cagaço de ser presidente.
Fomos pra seu escritório, sala oval, palácio do planato, sei lá. Tentamos entrar pelo elevador dos fundos, de serviço e que só cabiam duas pessoas, mas nao conseguimos pq existia uma viga de concreto na frente da porta que dificultava muito a abertura dela. Fomos pela entrada principal mesmo. Chegamos lá, numa ante sala e estava lá a equipe dele com suas vestimentas estilo house of cards. As pessoas nos cumprimentaram e nem acharam estranho eu estar ali. Olhei pra mim e estava com a roupa que fico em casa, ou seja, uma camiseta muito velha e uma calça idem. Fiquei completamente desconfortável e sem graça. O presidente entrou para sua sala particular e me deixou lá sozinho com o meu desconforto, agora duplo.
Hoje, cinco pra sete de manhã eu ja estava na porta do lugar para fazer meu ultrassom de dedo da mão. Aquele dedo que acordou doendo da cirurgia por ter sofridos abusos enquanto eu estava dopado e entregue a sanha carnal da equipe médica. Cinco pra sete da manhã e descubro na porta que levei a guia errada pra autorizar no local e fazer o US.
Falo com a atendente. Ela me pergunta se ninguém pode me mandar por whats. Eu ligo e acordo o Nico e ele tira uma foto e me manda e eu mando pro email do laboratorio. Tudo resolvido, mas agora to acordado e tenso pq este transtorno básico de ínicio de dia deu um up no meu estado de vigília.
Vou fazer o ultrassom de mão, a moça me chama. Entro na sala, sento na cadeira, ela coloca um travesseiro no meu colo e me prepara e sai e diz que o medico já vem. Não tem jeito, ficar na salinha de US esperando o médico chegar a qualquer momento eu sempre acho que parece com esperar o rei, o juiz entrar no tribunal, o anjo da anunciação. Sempre penso que vai tocar trombetas anunciando ou tocar enter the sandman do metallica anunciando a anunciação.
O médico entrou num barulhão de abrir a porta que eu só não assustei pq nao tive tempo para isso. Sabe daquele jeito que se fosse aluno vc diria, tá pensando que tá na sua casa. Bom, mas ele não era aluno e talvez aquela fosse a casa dele e eu respeito autoridade. Tenho impressão que os que vão fazer este tipo de especialização não gostam muito do contato social. Ele era educado, não posso reclamar, mas conseguia ser nutella, barba meticulosamente recortada, e raiz ao mesmo tempo. Era meio pesado ao fazer as coisas, pesado de movimento mesmo. Algo como se o cerebelo dele tivesse algum problema na parte sensório motora de antecipar os movimentos musculares e conseguir prever direito a trajetória destes movimentos e também como suavizar o impacto provocados pelo fato de ter que terminá-los. Cerebelo s são mestres em fazer tudo isso, eles manjam deste paranauê de calcular trajetórias de movimentos musculares e já acionar, no meio do movimento, músculos antagonistas que começam a desacelerar a velocidade inicial. Ok, fez o ultrassom e disse q meu dedo estava mesmo em gatilho.
Saio de lá e ainda tenho mais duas coisas para fazer, autorizar guia de exame de esteira com ecocardiograma e comprar carne no savegnago.
Autorizo a guia, a atendente esta reclamando com a amiga q o celular da filha quebrou a tela e vai ficar em 1500 reais e, por isso, ela quer outro pq nao vale a pena consertar esse. Ao mesmo, também diz que não liga pra isso, que o dela é velho. Quase falo, melhor nao ligar mesmo pq sua filha já consome a cota monetária da familia em ligar pra isso. Incrivel a capacidade q temos de transformar em verdades absolutas e necessidades fundamentais pequenos mimos do dels-walter.
Ainda falta o supermercado, passo por lá e compro a carne. Óbvio que junto com ela compro cenouras, cogumelos, vagens, sorvete pimpinella de leitinho trufado com calda de morangos, duas caixas de cortado da dolce gusto e rumo pra casa para fazer o almoço.
Tenho uma vida feliz, hoje em dia. Mas também não sou tonto de agradecer ter sido despedido pq isso mudou minha vida. Mudou, mas eu ainda preferia ganhar mais dinheiro e continuar acomodado tocando meu tamborzinho. Mas a vida é real e de viés. Posto isso, o que tenho a dizer é que eu tenho felicidade em mim. Tenho limado o que era excesso mesmo em alguém cheio dos excessos como eu. Não existe prazer maior que dar aulas duas manhãs por semana e ter o resto da semana para fazer um monte de obrigações e prazeres. Vou tentar ser assim, vou equilibrar meu orçamento pra ser assim e não pra ser assado no sol do mercado educacional de ribeirão.
Depois que o presidente entrou pra sala dele e eu fiquei sozinho com os funcionários das antessalas do salão sei lá oval, eu fiquei meio sem jeito de estar ali, principalmente pq estava com aquela camiseta muito velha de dormir enquanto todos estavam terno tailleur house of cards dress code de ser. Andei até perto de uma estante, cheia de livros, HQs e brinquedos de madeira e comecei a dar uma olhada pra disfarçar a minha inadequação. Uma das secretárias veio até mim pq percebeu meu desconforto. Perguntou se estava tudo bem. Eu disse que estava me sentindo constrangido por vestir aquela roupa. E ela me disse que iria providenciar uma roupa adequada para mim.
E ainda me disse que eu não tinha idéia de como e em que condições e roupas o presidente tinha pego todos os outros membros da equipe.
Roupas novas são necessárias pra se substituir o presidente. Mesmo que este dress code não me pertença, eu terei que cozinhá-lo até ficar macio. Terei que entendê-lo pra poder continuar vestindo, por baixo dele, aquela velha camiseta detonada, confortável e amiga que também ainda sou eu.

A Faca na Mão do Açougueiro

Acordei hoje com planos intensos para o dia. Levar o Joca na escola, passar no sao francisco pra autorizar guia de váááários exames pós-cirurgia pra tirar a prova dos nove que tudo se resolveu, comprar um mecanismo de relógio pro relógio da sala, depositar o dinheiro do arroz doce na conta pra sair do negativo, pouquinho negativo, nada grave e tb validar çaporra de itoken q tem q ser na agencia só. Ah sim, e passar no supermercado para comprar os ingredientes prum yakissoba.
Entramos no Átila, o uno que eu, para variar, esqueci aberto na rua. Ligo a chave e nada, acabou a bateria. Baterias deveriam avisar q vão morrer em breve. Não que isso adiantaria muita coisa. Ligo pro seguro, moça amável, diz q o cara vem em 30 minutos mas ele vem em 15. Joca volta pra dentro e, até segunda ordem, vai faltar da escola.
Chega o senhor para ver a bateria e precisa trocar. Essa q estava no carro era de 2014. Lá se foi o dinheiro que eu ia depositar de arroz doce. Na boa. Uso meu nubank e divido em 3x. Eu e o senhor consertador de baterias ficamos falando mal do itau, das taxas, ele disse q começou no uniclass e hoje tá com uma conta sem cheque e sem nada. Eu digo que estou cancelando meu cartão de crédito esta semana. Pego o Joca e rumamos pra escola, ainda é a segunda aula e ele entra.
Vou ao itau validar o itoken e depois passo no lugar de autorizar guias do sao francisco. Mas a coisa está dificil, não se consegue estacionar, e eu estou meio sem saco de procurar vagas. Volto pra casa.
Passo no regina picadinhos, que medo deste nome e compro dois kits pra yakissoba, pq agora não tenho mais tempo pra ficar fazendo e debulhando o milho e recolhendo cada bago do trigo. Saio de lá e descubro que preciso de uma carninha pra colocar junto. São as proteinas das crianças. Vou ao carrefour comprar peito de frango. Penso, se for rápido nem preciso gastar 20 reais pra validar o estacionamento. Ligo o cronômetro do celular e começam as olimpíadas do faustão. A corrida contra o tempo. Talvez esta seja a parte mais excitante de minha manhã, tenho que caprichar.
O supermercado está vazio, parece que vai dar certo. Perder este jogo não significa ter que comprar 20 reais para não pagar estacionamento. Perder este jogo significa chegar até na catraca de saída e seu cartão ter passado do tempo máximo de permanência sem pagar e você ter que voltar ao supermercado para comprar alguma coisa para interar 20 reais. Por isso, a astúcia é necessária e o planejamento é importante. Você precisa calcular, antecipar os obstáculos, prever rotas alternativas. Tudo faz parte de um sistema dinâmico complexo e longe do equilíbrio. Estar tranquilo e favorável, como estava o supermercado, não significa nada. Como bem prevê a teoria do caos, sistemas longe do equilibrio podem ser completamente afetados por uma pequena perturbação no sistema. São os famosos pontos de bifurcação que podem fazer tudo mudar.
No meu caso, a pequena perturbação do sistema foi uma velhinha japonesa comprando carnes no açougue do supermercado. Depois dela, ainda tinham mais dos velhinhos para serem atendidos por apenas uma pessoa. Cheguei lá e vi meus peitos todos no balcão refrigerados. Seria aquela coisa rápida de pega dois pra mim, pesa, fecha o saco e coloca a etiqueta. Mas tinha a velhinha e ela dava instruções pro açougueiro, BIFE POR BIFE, “corta mais a gordura deste lado daqui, não, não tira menos do outros lado”. Bife por bife. Depois q acabaram as instruções para os bifes, veio o pedido de oito coxas de galinha. Até os outros velhinhos estavam incomodados. O açougueiro lançou um olhar rápido de compaixão para mim e de resignação quase zen de aceite das provações pelas quais ele precisa passar na sua profissão. Ele estava com uma faca psicose enorme nas mãos. E eu pensei, que risco enorme as velhinhas meticulosas orientais correm sem saber quando dão instruções minuciosas e intermináveis para alguém com uma faca imensa nas mãos.
Eu sou senhor do meu próprio destino, pensei. Não vai ser um ponto de bifurcação apontando pro sol nascente que vai estragar minha corrida contra o tempo nesta manhã intensa em que o calor promete voltar. EU SOU SENHOR DO MEU DESTINO. EU SOU MEU PRÓPRIO PONTO DE BIFURCAÇÃO A ANULAR AS ADVERSIDADES QUE SE COLOCAM NO MEU VIVER!
Enchi o peito de ar, contrai o abdómen, tomado por uma energia vital renovada, peguei uma bandeja de alcatra picada pra estrogonofe e parti em direção ao sucesso!